Notícia n. 4844 - Boletim Eletrônico IRIB / Julho de 2003 / Nº 754 - 29/07/2003
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
754
Date
2003Período
Julho
Description
Guetos urbanos - Douglas Vieira de Aguiar - A implantação de conjuntos habitacionais em áreas centrais da capital gaúcha suscita o debate sobre o manejo do espaço público e as práticas sociais daí decorrentes e mostra que o aspecto espacial desses projetos pode impedir a inclusão social de seus moradores Ao contrário do que ocorreu nos anos 60 e 70 quando, sob o patrocínio do BNH (Banco Nacional da Habitação), construiu-se em larga escala nas periferias urbanas, hoje se percebe uma tendência predominante de implantação dos projetos de habitação para população de baixa renda em áreas mais centrais das cidades. Parece haver um generalizado reconhecimento da importância das condições de acessibilidade e centralidade na implementação da habitação de caráter social, em particular, e de ambientes urbanos saudáveis em geral. O caso de Porto Alegre é emblemático nesse aspecto. Por mais de uma década sob uma administração municipal de esquerda, essa cidade parecia ter as condições ideais para a implementação do que poderia ser denominado o urbanismo da centralidade. A discussão crítica de dois casos – o Núcleo Planetário e o Núcleo Lupicínio Rodrigues – mostra, no entanto, uma história diferente. Esses conjuntos habitacionais, ambos concluídos recentemente pela municipalidade, apesar de seu alto grau de centralidade, têm evidenciado enormes dificuldades na realização desse urbanismo progressista. O fim da rua O Núcleo Planetário tem localização urbana privilegiada no bairro de Santana, vizinho a ruas de tradicional ocupação de classe média e média alta, o que aparentemente propiciaria uma aproximação natural entre moradores do núcleo e moradores do bairro. Curiosamente, o projeto não se aproveita dessa condição. Ao contrário, nega-a, criando uma espécie de bolsão de segregação a um só tempo vizinho e apartado do bairro. Seria essa uma estratégia projetual deliberada? Intencional ou não, o fato é que o padrão urbano introduzido pelo novo núcleo habitacional é exótico se comparado com o bairro onde se insere e com a cidade em geral. Sua configuração espacial labiríntica, constituída por becos estreitos e tortuosos, difere por inteiro do bairro existente, cujo espaço público é majoritariamente constituído por ruas largas e longas. A articulação entre o espaço público gerado pelo conjunto e o espaço público do bairro é particularmente impactante quando analisada sob a óptica da prática social: constrange a presença de estranhos e promove, via desenho urbano, a segregação social. Nesse aspecto, o modo como o Núcleo Planetário se liga à rua Santa Terezinha é decisivo. No arranjo espacial proposto, um dos blocos do conjunto habitacional literalmente obstrui a caixa da rua, ignora a presença desta e, não se sabe se deliberadamente ou por acidente, transforma num beco residual justamente aquele espaço que seria o principal elo de ligação do empreendimento ao coração do bairro. Seria esse um resultado almejado, produto de uma intenção de projeto? Uma tentativa de usar a arquitetura para evidenciar o contraste social? Ou seria um subproduto projetual inesperado? Inferno Passados dez anos desde a construção do Núcleo Planetário foi recentemente inaugurado o Núcleo Lupicínio Rodrigues, também localizado em área central, no não menos tradicional bairro de Menino Deus – outro caso de renovação de área deteriorada por urbanização informal com manutenção dos moradores no local. Desta feita, porém, a prefeitura esmerou-se no aspecto cosmético: a ornamentação emprega revestimentos cerâmicos ao modo do edifício de apartamentos projetado e construído para a classe média, e há um grande painel em mosaico que homenageia o compositor que empresta nome ao núcleo. Sob o aspecto espacial, no entanto, o projeto tem comprometimentos. Seguindo a tendência já observada no Núcleo Planetário, o arranjo espacial do Lupicínio Rodrigues foi concebido de modo a criar um gueto urbano, uma porção de espaço público segregado do entorno imediato. O bairro de Menino Deus, assim como o bairro de Santana onde foi implantado o Núcleo Planetário, tem seu espaço público configurado ao modo da cidade tradicional, de quarteirões em xadrez, com portas e janelas emoldurando o espaço das ruas. Essa lei elementar e ancestral do espaço público é aqui rompida. A rua frontal ao núcleo – nesse caso, uma praça – é ignorada e a maior parte das edificações que compõem o Lupicínio Rodrigues é voltada para um beco interno, produto de uma forma espacial introvertida. A implantação do conjunto dispôs as paredes laterais dos edifícios, na verdade empenas cegas, voltadas para a praça. Portanto, a contribuição do novo empreendimento à praça é majoritariamente dada por muros opacos. O beco, uma espécie de anel interior, é hoje conhecido como "inferno". O tráfico de entorpecentes, aspecto pelo qual o local é desde há muito notório, encontrou nessa arquitetura a espacialização propícia. Repete-se a questão: seria isso intencional ou um subproduto projetual inesperado? Protecionismo via desenho urbano Os casos acima comentados sugerem questionamentos. Muito embora para os moradores desses empreendimentos a situação atual seja, em tese, melhor que a anterior, quando residiam em casebres, o vislumbre daquilo que poderiam ser esses conjuntos se adequadamente pensados e desenhados serve como fermento para futuras intervenções. Há dois aspectos, ambos associados às práticas sociais envolvidas, que vêm à tona. O primeiro é morfológico ou seja, refere-se ao tipo de forma urbana gerada por esses novos conjuntos habitacionais. O outro é imobiliário, dado pela dinâmica urbana naturalmente associada às forças de mercado. No aspecto morfológico, ambos os casos têm como premissa o fato de os núcleos habitacionais estarem implantados em bairros cuja forma espacial é bastante precisa e inteligível, baseada na tradicional malha urbana de ruas em xadrez, numa composição oxigenada por vias largas e longas. De modo contrastante, a forma espacial do ambiente público verificada nos dois conjuntos é tortuosa, acanhada do ponto de vista dimensional, suscitando, inevitavelmente, a seguinte questão: por que introduzir, ou enxertar, num sistema espacial tradicional há tanto tempo vigente uma solução espacial exótica, fragmentada e labiríntica? Haveria a intenção de enfatizar essa comunidade ou esse lugar pela composição de um desenho urbano contrastante com o entorno e, em conseqüência, exacerbar o contraste social a partir do tratamento espacial ou arquitetônico? Do ponto de vista da dinâmica urbana, naturalmente associada às leis do mercado imobiliário, esses novos núcleos habitacionais apresentam uma limitação de fundamento. Esses imóveis não podem ser comercializados por seus moradores. São juridicamente objeto de uma cessão de uso por tempo determinado, 30 anos ao que se sabe. O fato de essas pessoas não serem proprietárias e, assim, não poderem dispor desses imóveis parece ser uma tentativa do poder público de impedir uma "expulsão branca", via lei natural do mercado imobiliário. Passados os anos, contudo, os efeitos desse paternalismo são ambíguos. Por um lado, as transferências de imóveis não são evitadas, pois as pessoas, muito embora impedidas de realizar uma venda legal, escriturada, simplesmente vendem a chave, da mesma forma que o comprador simplesmente paga pela chave. E assim ocorrem os negócios no mundo da informalidade. Lamentavelmente, a chave é em geral passada por valores aviltantes se comparados ao valor corrente dos imóveis nesses bairros. Ao final, o protecionismo torna-se desastroso para o lugar no momento em que é rompida a dinâmica imobiliária natural da cidade, baseada no valor econômico da localização urbana. Os moradores, por não se sentirem proprietários, têm, em geral, pouco ou nenhum cuidado com suas casas e, principalmente, com o local. O espaço público exibe, por toda parte, decadência e deterioração. Exatamente o oposto do que seria lógico esperar quando da inserção de um núcleo habitacional para pessoas de baixa renda em uma área urbana privilegiada. Correndo os riscos O resultado desse conluio de equívocos urbanísticos e jurídicos faz com que esses lugares que deveriam ser exemplos de renovação urbana e recuperação social sejam, ao contrário, exemplos de segregação espacial e degradação social. É lamentável que oportunidades tão perfeitas como essas de emprego dos recursos da arquitetura e do urbanismo para melhoria social sejam desperdiçadas por equívocos disciplinares e ideológicos. Ficam, no entanto, as lições para intervenções futuras. Que, então, as estratégias urbanísticas e jurídicas a serem adotadas caminhem na direção de integrar as populações socialmente emergentes à cidade preexistente, ainda que se corra o risco da ocasional "expulsão branca"... Bibliografia ALEXANDER, C. (1965). A city is not a tree. Em Architectural Forum, New York, nº 2, Vol. 122. AGUIAR, DV. (1991). Grid Configuration and Land Use, PhD Thesis, Bartlett School, UCL. AYMONINO, C. (1970). El significado de las ciudades. Barcelona: Blume. HILLIER et al. (1993). Natural movement in Environment and Planning B, London, nº 1, Vol. 20. LEFEBVRE, H. (1969). El Derecho a la Ciudad. Madrid: Peninsula. Douglas Vieira de Aguiar - ([email protected]) é arquiteto formado pela UFRS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) em 1975, e PhD pela UCL (University College London), Inglaterra, em 1991. Atualmente leciona na UFRS
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