Notícia n. 4672 - Boletim Eletrônico IRIB / Maio de 2003 / Nº 693 - 30/05/2003
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
693
Date
2003Período
Maio
Description
Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica. Ato constitutivo do Sindicato das Meretrizes do Estado de São Paulo. Registrabilidade. - Processo nº 00.02.179979-2 Vistos, etc... Cuida-se de procedimento administrativo, instaurado na forma de Dúvida Registral, nos termos do artigo 115 da Lei de Registros Públicos, pelo Oficial do 9o Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica que obstou o registro de ato constitutivo do Sindicato das Meretrizes do Estado de São Paulo, definido em estatuto datado de 08 de agosto de 2002. Destacou que foi conferida qualificação negativa por não envolver profissão legalmente regulamentada, conquanto revele finalidade econômica. Ademais, a atividade não cumpre os padrões de moral e desatende aos bons costumes. Apresentou a nota devolutiva e demais documentos, pugnando por seu processamento. Oficiado, o Ministério do Trabalho apresentou a classificação brasileira de ocupações, no que afeta às profissionais do sexo (código 5198). O Ministério Público se posicionou pela superação do entrave registrário. É o relatório. DECIDO: O Oficial do 9o Registro de Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica obstou o registro de ATO constitutivo do Sindicato das Meretrizes do Estado de São Paulo, invocando, para tanto, o artigo 115 da Lei de Registros Públicos, que veda acesso registral a ATOS CONSTITUTIVOS de pessoas jurídicas que tenham por objeto atividades ilícitas ou nocivas e perigosas ao "bem público", à coletividade, à ordem pública, à moral e aos bons costumes. Durante a instrução procedimental, o Ministério do Trabalho apresentou importante informação, revelando que a "prostituição" é atividade catalogada oficialmente como "atividade econômica". A atividade aparece descrita na classificação brasileira de ocupações - C.B.O. 2002 - sob o código de n o 5198, na família ocupacional "TRABALHADORES DO SEXO". Também restou evidenciado que não se trata de atividade ilícita, conquanto não vedada em qualquer comando normativo, bem como em previsão penal. Não se constituindo crime ou atividade desaconselhada legalmente, quer seja sobre o prisma da segurança, saúde, ou de qualquer outra inspiração, a "prostituição" deve ser entendida como integrante do rol das atividades lícitas. No plano concreto, foi anotada a existência de atividades "irregulares" e "ilícitas", que invariavelmente circundam e orbitam sobre a atividade de exploração do sexo, como por exemplo, o favorecimento à prostituição alheia o proxenetismo a reserva de locais específicos e privativos para o meretrício, etc., contudo, a "prostituição" como atividade direta e imediata, não encontra estorvo legal para o seu exercício. Portanto, o obstáculo ao REGISTRO não poderia, como não foi, determinado pela ilicitude, desvio ou irregularidade da atividade dita laboral. A desqualificação veio calcada em afronta aos padrões de "moral e aos bons costumes", ou mesmo à "ordem pública", tal qual previsto pelo artigo 115 da lei 6.015/73. Assim, desviando-se das trilhas da "licitude" e "ilicitude", a análise aponta, em princípio, para uma verificação do sentido, alcance e conteúdo dos genéricos e fluidos termos utilizados pelo dispositivo da lei registrária ("moral e bons costumes" – "ordem pública"), e a eventual tipificação das atividades de "exploração do sexo" como contrárias a tais padrões. Esta visão poderia conferir à análise uma consistência subjetiva, determinado pela sensibilidade do aplicador do direito, pois em decorrência da amplitude dos termos, estes poderiam flutuar em atenção a uma leitura quase que pessoal dos fenômenos sociais, bem como da valoração e qualificação destes. Assim, considerando tais circunstâncias, a questão da registrabilidade dos estatutos do Sindicato das Meretrizes, deve escapar deste aparente campo de instabilidade interpretativo e de precariedade em função dos pontos de "apoio", que apenas viriam gerar insegurança jurídica. Destarte, razoável se mostra o alargamento da discussão, para que esta não se restrinja apenas sobre um único e subjetivo vértice, ou seja, para que não se proceda a um estudo exclusivamente sobre o exame da "atividade" e sua conformação ou desconformidade com padrões médios ditados pelas regras de "moralidade social", atém porque, opostamente do que consta do lúcido parecer ministerial, não se verifica qualquer novo avanço de conceitos ou nova abordagem sobre a atividade do sexo e seus efeitos sociais. O mundo globalizado trata tal fenômeno social da mesma forma como foi tratado na Grécia antiga, bem como, durante o Império Romano, ou em qualquer período contemporâneo marcado por avanços ou por estagnação do desenvolvimento social. A "atividade do sexo", tida e havida com a "profissão" mais antiga da humanidade, sempre foi atingida por críticas, por repúdio, por censuras, por castigos sociais. A prostituição sempre tida como avessa aos conceitos tradicionais, aos padrões familiares e sociais, e sempre se desenvolveu à margem e às sobras da sociedade, invariavelmente emparceirada com atividades ilícitas e proibidas. A célula familiar, como a primeira estrutura social sempre reprovou a prostituição, isto em qualquer época, em qualquer tempo, em qualquer sociedade. Apenas a intensidade desta reprovação é que experimentou variações e oscilações, mas não a direção das críticas e censuras. Portanto, sob o ponto de vista social, não resta dúvida de que a ATIVIDADE DO SEXO foi sempre, e será reprovada socialmente, pelo menos enquanto a família for célula estrutural do tecido social. A questão que deve pautar a presente decisão é saber se sob o ponto de vista CONSTITUCIONAL, esta reprovação social deve determinar a manutenção do MERETRÍCIO como atividade marginal, ou se pode e deve ser regularizada pela via registral, isto porque a Lei de Registros Públicos foi editada anteriormente à promulgação da nova CARTA POLÍTICA FEDERAL, de forma que seus efeitos se submetem a um crivo constitucional, determinado pela nova escala de valores inaugurados com a carta cidadã. Como se colocou, a prostituição já conquistou conteúdo social imutável, que não irá se alterar com o progresso tecnológico com a aceleração das comunicações com o desenvolvimento das armas de destruição em massa. A única variação no "sentimento geral", do ponto de vista jurídico, se refere ao nível e à forma do "intervencionismo estatal" e os padrões ditados pela principiologia normativa que o envolve. Variando de um Estado Liberal até um Estado Social Puro, o intervencionismo estatal cumpriu missões quase que opostas, passando de uma forma praticamente nula ou inexistente de participação do Estado na vida privada, para um sistema de "tutela estatal" muito acentuado sobre as liberdades e prerrogativas pessoais. A atual concepção constitucional aceita o "intervencionismo" sobre os direitos fundamentais, mas preserva como guardiã maior, as liberdades individuais que devem representar os pressupostos necessários e inerentes à busca da felicidade. O Estado moderno se estrutura com base neste "equilíbrio de forças", ao consagrar e apoiar os direitos individuais, mas os limitando e restringindo em atenção a interesses contrários de índole COLETIVA. Portanto a registrabilidade do Sindicato das Meretrizes não deve ser visto apenas sob o subjetivo enfoque da moral e bons costumes, mas sim, sobre o padrão maior da "ordem pública" norteada e estruturada entre aquilo ou aquelas atividades que devem ser permitidas para salvaguarda dos direitos individuais, em contrapartida com o que deve ser proibido e negado em atenção ao interesse coletivo. Como anotado, a Lei de Registros Públicos é anterior à Constituição de 1988, de forma que seu conteúdo e conceitos foram recepcionados com a dimensão dos novos conceitos e novos vetores trazidos pela lei maior, de forma que a "ordem pública" invocada pela lei registrária passou a ter conteúdo determinado pelos princípios emanados pela nova carta. A Carta Política, portanto, protege o trabalho (art. 6o), assegura a liberdade de iniciativa, garante a liberdade de associação. De forma transversa, exige o incondicional respeito à cidadania, à dignidade da pessoa humana, e aos valores sociais do trabalho. Para este propósito, convém relembrar o enfático episódio, trazido no parecer ministerial, que evolve a questão do "arremesso de anão". Tal episódio ocorrido na França nos idos de 1991, consistia em uma simples forma de entretenimento materializado pelo arremesso de um anão. O assim chamado cliente, como brinde ou prêmio, conquistava o direito de "arremessar" literalmente um anão. Por considerar situação ultrajante e degradante, a prática foi proibida por um Prefeito da cidade, que ficava nos arredores de Paris. Inconformado com tal decisão, nada menos do que o próprio protagonista do grosseiro espetáculo, o anão, ingressou com postulação pedindo a desconstituição do ATO de proibição, o que foi aceito pela Corte local. Inconformado, o Prefeito recorreu da decisão, obtendo a reforma do julgado pela Corte Européia dos Direitos Humanos, que entendeu que aquela atitude degradante e humilhante transgredia e vulnerava os direitos pessoais ligados à "dignidade da pessoa humana". A corte proclamou que tais direitos são inalienáveis e indeclináveis, de forma que, sequer o direito individual do interessado, sequer o seu direito a um trabalho de cunho econômico, foram suficientes para afastar a aplicação deste princípio maior. Este episódio revelou que a questão da DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA transcende a interesses pessoais e privados, impedindo que por distúrbios, vícios ou desvios comportamentais, pessoas transgridam seus próprios direitos fundamentais. O Estado deve intervir, impedindo as atividades degradantes e humilhantes. Pois bem, nosso sadio texto maior, que introduziu um conteúdo bastante consistente de Estado intervencionista, veio a proclamar, como um dos maiores e mais relevante princípios, o da "dignidade da pessoa humana", e é com base no conteúdo deste que a presente demanda deve ser resolvida. Assim, utilizando o conceito trazido junto à manifestação ministerial, "a prostituição é uma estrutura de prestações de serviços sexuais, sob o ponto de vista da troca" (Perlongher - fls. 64), e envolve três aspectos, quais sejam: "o aluguel do corpo, jogos eróticos e ausência de amor" (Langenest - fls. 64). A questão, destarte, é saber se a realização de "ato sexual", que tem a finalidade direta da "procriação", bem como da satisfação dos anseios carnais, quando realizada por simples "paga", sem sentimento, sem a vontade normal do ato, por mera contraprestação pecuniária, seria ou não situação aviltante e contrária à "dignidade humana". A indagação exige resposta a partir de dados extraídos do padrão médio familiar, assim considerada a estrutura familiar convencional. Este enfoque evidencia que a prostituição não comporta ou ostenta qualquer sentimento ou sensação ligada à "dignidade humana" ou que atenda a seus propósitos. Apenas pessoas formadas a partir de estruturas despidas das amarras familiares é que poderão, sensatamente, não nutrir maiores sentimentos de culpa, de perda ou de indignidade com a própria prostituição. Ou seja, como em nossa sociedade contemporânea o padrão médio é de cunho familiar, e como este reprova e repudia a prostituição e até a vulgarização das atitudes sexuais, por maiores avanços sociais que ocorram nesse sentido, fragrante portanto que, em termos de critérios usuais e normais, em termos de ordem pública, a prostituição não pode ser vista ou sentida como ATITUDE DIGNA à pessoa humana. A liberdade individual, em face da reprovação coletiva, deve ceder lugar para a tutela pública que, amparada no conceito de "interesse coletivo", obsta a regularização de atividade degradante. Deixar um largo contingente de pessoas à margem da sociedade, realizando ATIVIDADE sem a devida regulamentação e regularização, não é o propósito do ESTADO. Em contrapartida, este não pode permitir que atividades degradantes conquistem o status de atividade comum e ordinária. Efetivamente que não será com a vedação ao registro do Sindicato da categoria que se irá conter ou controlar a prática da prostituição, afinal não é este o propósito. Contudo, a ausência do REGISTRO, que ora é negado, não fomentará ou propagará o "espírito associativo" de que trata o artigo 7, "d", da minuta do estatuto. Certo é que nem todas atividades o Estado intervencionista deve permitir e regulamentar. O texto supremo indica que o Poder Público tem o dever de impedir toda e qualquer atividade degradante e humilhante, assim consideradas aquelas que reduzem o ser humano a uma situação de indignidade frente a sua própria pessoa e frente a seus pares na sociedade. A proteção constitucional à "dignidade da pessoa humana", que é direito individual indeclinável, não se ajusta à idéia da comercialização do próprio corpo, seja para a venda direta de órgãos - situação que ostenta vedação legal -, seja para satisfação da libido alheia. Ante o exposto, considerando a vedação legal, apresentada no artigo 115 da Lei de Registros Públicos, considerando o seu conteúdo revelado pelo art. 1o, inciso III, da Constituição Federal, JULGO PROCEDENTE A DÚVIDA. Cientifique-se os interessados. P.R.I.C. São Paulo, 6 de Maio de 2003. Venício Antonio de Paula Salles Juiz de Direito Titular
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
4672
Idioma
pt_BR