Notícia n. 4009 - Boletim Eletrônico IRIB / Setembro de 2002 / Nº 543 - 25/09/2002
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
543
Date
2002Período
Setembro
Description
A Eficácia Jurídica do Documento Eletrônico - Paulo Roberto G. Ferreira* - A Presidência legislou, editando a MP 2200-2, que fez previsão legal da assinatura e do documento digital. Para tanto, criou também uma ICP Brasil, sigla sonora que representa um “bureau” responsável pela Infra-estrutura de Chaves Públicas Brasileira. Este órgão, subordinado ao Poder Executivo, é o responsável em credenciar entidades certificadoras que terão, assim, uma presunção de qualidade técnica. O credenciamento será feito segundo critérios estabelecidos pela cadeia de comandados da Presidência. A assinatura digital, sabemos, é meio tecno-lógico que, através de processos matemáticos singularmente identificados permite ter certeza da integridade do conteúdo de uma mensagem. Se houver, também, uma certeza sobre a identidade da pessoa que utiliza o processo matemático singular, é possível, sem erro, atribuir a autoria ao emitente da mensagem. Uma ICP é criada especialmente para isso. Uma autoridade de confiança passa a distribuir pares de chaves (de algoritmos) que permitem a execução dos processos matemáticos singulares, identificando as pessoas que os recebem e emitindo os certificados que confirmam as identidades. A ICP Brasil principiou criando a Chave Raiz dela própria. Abaixo dela, virão pessoas às quais o Estado, através de procedimentos de auditoria técnica, considerará habilitadas ao credenciamento, significa dizer à confiança do Estado de que os procedimentos de segurança técnica, lógica e física, são adequados. Para inserir toda esta barafunda tecnológica e, agora, burocrática, na ordem jurídica, o Poder Executivo foi singelo. Disse, no artigo 10 da MP 2200-2, que se consideram documentos públicos ou particulares para todos os fins, conforme seja a origem, os documentos eletrônicos de que trata a MP. Mais adiante, prosseguiu com dois parágrafos que, por sentenças distintas, dizem exatamente a mesma coisa. No popular, choveu no molhado... E aí, o problema. O parágrafo primeiro do artigo 10 diz que os efeitos das declarações constantes de documentos eletrônicos produzidos com o processo da ICP Brasil presumem-se verdadeiros com relação aos signatários, como prevê o artigo 131 do Código Civil. Este, por sua vez, diz que as declarações constantes de documentos assinados presumem-se verdadeiras em relação aos signatários, ressalvando que as declarações enunciativas não eximem os interessados de prová-las. Em breve conclusão: os documentos eletrônicos assinados digitalmente, sob a raiz ICP Brasil, têm a presunção de veracidade. A seguir, o parágrafo segundo do artigo 10 diz que também são válidos outros documentos eletrônicos com certificação digital expedida por empresas não credenciadas pela ICP Brasil, desde que aceitos pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto (sic) o documento. Têm, em resumo, a presunção de veracidade prevista pelo outro parágrafo, o primeiro. As duas previsões legais são, então, a mesma: documentos eletrônicos têm presunção de veracidade. Em suma, o Presidente comparece na MP 2200-2 para declarar vigentes artigos do Código Civil e do Código de Processo Civil, leis aprovadas no Congresso Nacional e que prevêem ampla liberdade de manifestação da vontade (art. 129 Código Civil) e ampla liberdade para a produção de provas (art. 332, Código de Processo Civil). O teor destes dois artigos é fundamento presente nos sistemas jurídicos das democracias liberais, sendo o complemento jurídico-social de duas garantias individuais, o contraditório e a ampla defesa, previstos no Brasil, no inciso 55, art. 5º, da Constituição Federal. Todas as manifestações têm a presunção de veracidade. Em vista desta amplitude, os sistemas jurídicos criaram a partir do séc. VII, para a paz social e a segurança jurídica, a presunção de autenticidade. Justiniano, na Novela 44, narra o seguinte caso: assinado o documento, faleceram os autores (comprador e vendedor), as testemunhas e o tabelião. Em litígio, os herdeiros tinham versões distintas. Justiniano decidiu, então, que os documentos nestas circunstâncias teriam sua própria firmeza. Criava a fé pública em sentido objetivo, considerando-a existente nos documentos notariais. O que é um documento autêntico? É um documento que contém fé pública quanto ao seu conteúdo e à identidade e presença dos participantes. Este documento é sempre oriundo do próprio Estado, através de seus agentes, ou, quando se trata de atos ou negócios dos cidadãos, da intervenção de um tabelião, a quem o Estado delegou a fé pública justamente para descentralizar o “fornecimento” deste atributo a quem queira dele fazer uso. Nos documentos particulares que lhe são apresentados, os tabeliães podem também autenticar a assinatura, vinculando o sinal único de alguém com a vontade manifesta no documento. A presunção de autenticidade decorre, então, apenas de documentos públicos ou de documentos notariais. Os documentos particulares que contenham reconhecimento da assinatura por autenticidade conferem esta presunção exclusivamente em relação à assinatura e ao ato notarial que atesta ser do emitente da vontade. Quanto ao conteúdo de tal documento particular, a presunção será de veracidade. Na prática processual e na vida cotidiana, todos sabemos as vantagens de um documento “passado em cartório”. Ele tem fé pública e é, portanto, mais sólido, mais robusto quanto à sua eficácia. A maior expressão do documento autêntico ocorre justamente no processo: enquanto as manifestações privadas têm a presunção de veracidade e, portanto, necessitam ser provadas se contestadas, as manifestações contidas em documentos autênticos presumem-se verdadeiras, até que se prove o contrário. Isto significa que quem contesta um documento autêntico tem o ônus de provar eventual falsidade. Inverte-se o ônus da prova. Parece pouco, mas não é. A segurança jurídica decorrente do próprio documento e a profilaxia jurídica exercida pelo tabelião permitem ao Estado, ao juiz que julga e a toda a sociedade grande certeza jurídica, o que nos proporciona este fim etéreo: a paz social. Voltamos ao documento eletrônico e às previsões da MP 2200-2. A norma fala em autenticidade apenas em seu artigo 1º, quando refere que a ICP Brasil é instituída “para garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica”. Parece haver uma elementar confusão na redação, talvez porque a criptografia assimétrica é técnica nova e assimilada de normas alienígenas mal traduzidas. Recordemos também que a primeira versão da MP 2200, editada em 28 de junho de 2001, tinha tantas impropriedades que causou comoção nos meios jurídicos e econômicos. O fim designado à ICP Brasil pela MP é a busca destes elementos através dos meios tecnológicos providos pela criptografia assimétrica e pela função de agência de auditoria e credenciamento da adequação aos padrões tecnológicos. Entender o oposto seria crer que o Presidente quis revogar os dispositivos legais a respeito da validade jurídica documental, passando um pano na construção lógico-sistêmica da presunção de autenticidade, ato que, segundo ouvimos de algumas autoridades do próprio Poder Executivo, não pretendeu. Esta confusão, desconfiamos, é puramente semiótica. O assunto é novo a doutrina técnica da criptografia assimétrica menciona entre seus atributos as garantias de autenticidade, integridade e o não-repúdio. Estes caracteres não são jurídicos, são técnicos, da informática. Autenticidade é o método de verificação de uma autorização previamente fornecida a um usuário do sistema. Por exemplo, numa senha, a palavra “asia”. Aquele que digitar esta palavra será autenticado pelo sistema. Quem digitar “Asia” ou “ásia” ou “Ásia” não será reconhecido como autêntico. A integridade indica a imutabilidade a partir da formação, a não violação do documento. O não-repúdio seria a impossibilidade de refutar a manifestação de vontade assinada digitalmente. É conclusão errônea dos técnicos, visto que a regra jurídica sistêmica é a de permitir o repúdio. “Sim, excelência, assinei, mas havia um revólver na minha cabeça e no momento eu corria risco de vida”. Como não seria repudiável esta situação viciada pela coação, seja assinada de próprio punho ou em meio eletrônico? Já é tal o repúdio ao “não repúdio” que os autores da área (informática) já revêem suas posições. O norte-americano Bruce Schneier é um deles. Com invulgar honestidade intelectual, principia seu livro titulado “Segurança.com - Segredos e mentiras sobre a proteção na vida digital” refutando exatamente o conceito de “não repúdio”, exposto em obra anterior. No comércio, a situação é bem diferente. Empresas privadas de certificação estão atribuindo aos seus certificados a autenticidade e o não-repúdio, no varejo, vendendo gato como carne de lebre. É parte do mercado certa maliciosidade, mas esta terá conseqüências funestas para a sociedade. Em primeiro lugar, o efeito pretendido é impossível –ao menos quanto ao não-repúdio ademais, a certificação digital é instrumento de segmentos do mercado e da sociedade que desejam rapidez, com segurança, e os efeitos de um processo judicial em que a perícia vai ser chamada para verificar de um incidente de falsidade digital poderão delongar anos. Em sucinta conclusão, melhor será que as empresas certificadoras busquem atribuir autenticidade aos seus certificados com a intervenção de um tabelião, seja no processo de identificação, seja na própria emissão do certificado, como, aliás, já faz uma destas empresas. Na dúvida, a certificação digital sofre e terá que suplantar a desconfiança e os tropeços dos enganados. E, para seu pior destino, dependerá do longo tempo necessário à firmeza da jurisprudência. * Paulo Roberto G. Ferreira é Tabelião de Notas (26º Tabelião de Notas, São Paulo-SP).
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
4009
Idioma
pt_BR