Notícia n. 4008 - Boletim Eletrônico IRIB / Setembro de 2002 / Nº 543 - 25/09/2002
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
543
Date
2002Período
Setembro
Description
Sociedade de fato de homossexuais: mais que uma questão de direito, uma questão social. - Ângelo Volpi Neto* - A situação das pessoas de mesmo sexo que mantêm uma sociedade de fato é por demais delicada. Entretanto, sua existência é notória, assim como a sua necessidade de amparo legislativo e jurisdicional. A esta situação não está totalmente alheio o legislador, e neste sentido já se vislumbram várias decisões dos tribunais. Houve nas últimas décadas ampla divulgação de que o Parlamento europeu solicitou aos países da União Européia que permitissem o casamento de pessoas do mesmo sexo. O fato é que o mundo vem reconhecendo e legitimando estas relações. Há que se reconhecer que muitos avanços neste sentido vêm ocorrendo a cada dia. O direito à assistência previdenciária ao companheiro ou companheira homossexual vem sendo garantido mediante comprovação da união estável e da dependência econômica. Dentre os documentos exigidos para se fazer a comprovação desta união estão aqueles que devem ser efetivados junto às Serventias Notariais, conforme o disposto nos itens II, III e XII da Instrução Normativa nº 20, de 18/5/2000, no que se refere à pensão por morte: item II, “disposições testamentárias” item III, "declaração especial feita perante tabelião (escritura pública declaratória de dependência econômica) item IV, "escritura de compra e venda de imóvel pelo segurado em nome do dependente". Nota-se que os próprios órgãos governamentais chamam os notários a participar deste processo. Assim, acreditamos que poderemos ser ainda mais úteis. A união de homossexuais, como realidade fática e inconteste, vem batendo às portas dos tribunais e deles obtendo o seu amparo. A Constituição brasileira, em seu artigo 3º, inciso IV, na esteira das legislações modernas e democráticas, veda expressamente a discriminação em razão do sexo: "Art. 3º – Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) Inciso IV – Promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação." Entretanto, sabemos que não é assim que acontece. A discriminação existe em vários setores da nossa sociedade, e não apenas em relação à questão da homossexualidade. Esta foi uma das razões que levou a Justiça do Rio Grande do Sul à formação de juízes especializados e a atribuir competência à Vara de Família, com o respaldo do sigilo garantido a estas ações, para julgar litígios oriundos das relações de afeto, companheirismo e outros sentimentos mais inerentes às relações humanas e não exclusivos dos casais heterossexuais. Em decisão da 5ª Vara de Família e Sucessões da Comarca de Porto Alegre, o Des. Breno Moreira Mussi (Relator) argumenta: "A orientação sexual é direito da pessoa, atributo da dignidade. O fato de alguém se ligar a outro do mesmo sexo para uma proposta de vida em comum, e desenvolver os seus afetos, está dentro da prerrogativa da pessoa. A identidade dos sexos não torna diferente ou impede o intenso conteúdo afetivo de uma relação espiritual, enfim, de amor, descaracterizando-a como tal" (extraído do livro A sexualidade vista pelos tribunais, de Rodrigo da Cunha Pereira). Muito embora reconheçamos de fato a existência da união entre homossexuais, desculpamo-nos, como notários, pela falta de assistência e de amparo que também em nossas atividades, por muitas vezes, negamos a estes consortes. Não só por convicções reacionárias e preconceituosas, mas, quero crer, em grande parte pela impossibilidade legal de agir de forma diferente. Quando tentamos nos apoiar na Constituição Federal que, como vimos, abomina a discriminação, por outro lado, constatamos, como se vê no art. 226CF, parágrafo 3º, regulamentado pela Lei 9.278, de 10/5/1996: "Art.1º – É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família.” Aqui o legislador corrigiu e deu suporte a uma árdua luta, também eivada de preconceitos e injustiças sofridos pela mulher que convivia em relação heterossexual à margem da proteção legal, uma vez que a relação não estava acobertada pelo manto da legalidade. O legislador não teve, no entanto, o mesmo cuidado com relação aos homossexuais. Assim, muito embora não haja expressa disposição legal reconhecendo a união de fato entre homossexuais, inúmeras são as decisões judiciais que lhes atribuem as características e o reconhecimento enquadrados no conceito de união estável, não só com relação à afetividade, ao companheirismo etc., mas também reconhecendo-lhes direitos patrimoniais que daí decorrem. Neste sentido, a 7ª Câmara do TJRS reconheceu o direito de ser meeiro o homossexual que manteve relação estável com outro. Desta forma há que se posicionarem também os notários. Afinal, suas atividades devem ser exercidas no auxílio à Justiça e em prol da comunidade, tendo como função social elaborar seus atos com o fim de diminuir ou de eliminar litígios. Neste sentido, é o momento de cuidar com maior atenção das necessidades que emergem das relações homossexuais, porque, além do envolvimento afetivo – merecedor do respeito da sociedade –, delas advêm direitos obrigacionais e patrimoniais que devem ser protegidos pelo sistema. Portanto, o argumento de que o tabelião não pode lavrar documentos onde se denote a existência de uma união de fato entre pessoas do mesmo sexo por não haver expressa previsão legal ou por ser contrária à moral e aos bons costumes, é no mínimo uma forma de covardia frente a uma situação que exige postura, firmeza e, acima de tudo, conhecimento jurídico para buscar na legislação meios de proteção a esta categoria. Concluindo, como a nossa Constituição nos assegura com absoluta prioridade "o bem-estar de todos, sem preconceito...", esta não é apenas uma questão de direito e, sim, muito mais, uma questão social, pois temos todos não só o direito, mas, acima de tudo, o dever de sermos felizes. * Ângelo Volpi Neto – 7º Tabelionato de Curitiba, com a colaboração de Clarice Ribeiro dos Santos
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
4008
Idioma
pt_BR