Notícia n. 3942 - Boletim Eletrônico IRIB / Agosto de 2002 / Nº 533 - 29/08/2002
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
533
Date
2002Período
Agosto
Description
O falso documental no Direito e na História - J. Nascimento Franco - Na obra clássica que escreveu sob o título Teoria Giuridica del Documento, Paolo Guidi dedica um longo capítulo ao exame dos efeitos jurídicos do documento falso. E embora comece por salientar que sob muitos aspectos um documento pode ter, no juízo histórico, relevância igual à que apresenta nos tribunais, não aborda sequer um entre os grandes falsos documentais, nem os efeitos que produziram na área do Direito e da História. A omissão talvez se justifique pelo seguinte tópico: “Quello que più conta, ai fini della nostra indagine, è la constatazione che il documento, in ambedue i procedimenti (o judiciário e o histórico), si presenta come cosa capace di fornire la rappresentazione permanente di un fato che è fuori di esso: conserva cioè in ambedue i campi uguale essenza, uguale funzione. Nel campo storico, però, il documento, più spesso, non rappresenta um fatto, di per sè, storicamente decisivo, capace cioè, da solo, di fornire il fondamento del giudizio da emettere, mentre nel campo giudiziario è normale che rappresenti il fatto che è il diretto oggetto di acertamento da parte del giudice.”(1) Ob. cit., pág. 3. 1 Pena é que Paolo Guidi não tenha examinado alguns casuísmos históricos que sempre intrigaram e ainda continuam intrigando juristas e historiadores. Um deles, talvez o maior de todos, é o do Constitutum Constantini pelo qual o imperador Constantino teria doado ao Vaticano, ou, mais precisamente, ao Papa Silvestre, o Palácio de Latrão, Roma, além de toda as províncias e cidades da Itália e do Ocidente. No Brasil, só encontrei notícia do tema na obra O Papa e o Concílio (2) Vol. IV, tomo I, p. 36, e tomo II, p. 134, das Obras Completas de Rui Barbosa, ed. Ministério da Educação e Cultura, 1977.2, na qual, sob o pseudônimo de Janus e com a colaboração de J.N. Huber, o apóstata Dollinger arremeteu-se contra os dogmas da Imaculada Conceição e da infalibilidade papal, abrindo uma dissidência alemã na área do Catolicismo. Prefaciando sua tradução, Rui Barbosa refere-se apressadamente à matéria, donde deduzo que desconhecia tanto o texto do Constitutum, como o livro de Lorenzo Valla, De Falso Credita et Ementita Constantini Donatione Demonstratio(3) Em francês, a obra de Valla foi traduzida por Jean Baptiste Giard, sob o título de “La Donation de Constantin”3, na qual o grande humanista desvendou a falsidade do documento. Sendo talvez o tradutor-prefaciador mais caudaloso do mundo, tanto que escreveu prefácio maior que a obra traduzida, Rui apenas de viés comenta o tema talvez mais intrincado da história do Vaticano, contra o qual ele deflagrou sua ira de neomaçom. O Constitutum é, sem dúvida, a maior falsificação que se conhece, se mensurada pelos efeitos históricos e jurídicos que produziu(4) Só com o Tratado de Latrão é que cessou o conflito entre a Igreja e o Estado italiano. Pelo Tratado, a Igreja reconheceu Roma como capital da Itália e a autoridade do Estado sobre o território italiano, enquanto que o Estado reconheceu a do Vaticano sobre o minúsculo território onde tem sua sede.4, senão também pela abundante bibliografia que inspirou nos últimos dois séculos. Somente Pietro de Leo consultou, para a elaboração de sua obra Ricerche sui Falsi Medioevali(5) Pietro De Leo, Ricerche Sui Falsi Medioevali, I, II Constitutum Constantini.5, publicada em 1974, nada menos que 80 obras, sendo 64 em alemão, seis em inglês, 11 em francês e o restante em italiano. E note-se que toda essa avalanche de obras surgiu nos últimos 100 anos, certamente porque o autor buscou fontes mais à mão para seu estudo. Em obra de menor extensão, publicada em 1987, J.L. de Renaucourt(6) J.L. de Renaucourt, La Donation de Constantin et la Prise du Pouvoir par Pepin le Bref. 6 reporta-se a 27 livros escritos de 1850 a 1984, numa demonstração de que a Donatio continua interessando até hoje os humanistas e pesquisadores nos maiores centros culturais do mundo. Nem podia ser diferente, se consideradas a causa e a finalidade da suposta liberalidade do Imperador Constantino para com o Papado. Segundo Renaucourt, o pontífice romano precisava que sua autoridade fosse reconhecida sobre Roma, para que pudesse criar um estado pontifical com peso político apto para completar sua legitimidade espiritual. Para documentar essa autoridade, prossegue o historiador, é que surgiu o Constitutum Constantini, segundo o qual o Imperador Constantino (312-337), que sofria de lepra, teve um sonho em que os apóstolos Pedro e Paulo o aconselharam a visitar o Papa Silvestre I e solicitar uma intercessão divina que o livrasse daquele mal. Curado, Constantino recebeu o batismo das mãos do Papa Silvestre e, retribuindo a graça que havia suplicado, outorgou-lhe o Constitutum, investindo-o e a todos seus sucessores, como vigários de Cristo e da Igreja Romana, no principado sobre as quatro sedes patriarcais do Ocidente, assim como sobre todas as igrejas do mundo. E, ainda segundo Renaucourt, para que o Papa pudesse ter moradia digna da nobreza de suas funções, o doador entregou-lhe também o Palácio do Latrão: “Concedemos não somente nosso palácio de Latrão, mas também a Cidade, mais todas as províncias e cidades da Itália e do Ocidente”. E reconhecendo a inconveniência de existirem duas autoridades no mesmo local, o doador dispôs: “Por isso, julgamos oportuno transferir nosso Império e nosso poder nas regiões orientais, e construir na província de Bisâncio uma cidade que terá nosso nome e será a capital do Império, porque não é justo que o Imperador exerça seu poder onde ficarão instalados os principatus sacerdotum e a capital da religião cristã”.(7) Idem, pág. 11.7 Supostamente elaborado nos meados do século VIII, segundo Pietro de Leo, o Constitutum começou a ser questionado já no século IX. Mas quem realmente se esmerou em discutir-lhe a autencidade foi Lourenzo Valla, na obra publicada em 1442 e que é considerada como a matriz da crítica moderna. Essa obra deu início à pesquisa que ainda agora continua viva e provocante, tanto que em 1990 Marcello Caleo, professor de Filosofia na Universidade de Salermo, publicou, sob o título Verità e Certezza della Donazione di Costantino, um livro a que batizou por Polêmica com Lorenzo Valla. Contestando seu “opositor”, o “polemista” sustenta que a doação foi juridicamente válida, ainda que se admita a falsidade do documento, porque o Papa recebeu o que lhe havia sido ilegalmente retirado: “Dunque la natura del crimine è immaginaria. Un crimine supposto, un crimine pensato. E che sia tale lo dimonstra il termine che usa di “donazione”. II dono infatti, non è reale, non è mai reale. Quello che vale nel dono è l’animus. Tanto è vero che “gratuitamente si dà”. Ma ora, se nel dono quello che vale è l’animus, quale sia questo animus si vede próprio dalla cosa nominata. Pertanto, se si chiamano “possessi”: Roma, l’Italia, le Gallie, l’Occidente intero, questi non sono divenuti possessi per mezzo del dono. Erano “possessi” prima del dono e per mano dei Pontefici pagani. Pertanto se di crimine si deve parlare, non si pùo incolpare del crimine i Pontefici cristiani che hanno ricevuto in dono delle cose da altri illegalmente possedute. E se per quei doni i Pontefici cristiani hanno meritato l’accusa, significa che esse hanno anche pagato per i furti altrui”.(8) Marcello Caleo, Verità e Certeza Della Donazione di Costantino, p.12.8 Esta tese sempre foi sustentada pelo Vaticano, segundo escreveu Janus no O Papa e o Concílio: “Havia contudo muitos anos (desde 752), que os papas tinham nos seus escritos precaução de não falar em dádiva, mas em mera restituição, sendo que as cidades e províncias italianas deviam ser restituídas ora a S.Pedro, ora à república romana.(9) Ob.cit., vol. II, p. 136.9 Na sustentação dessa tese, a Igreja implicitamente admitiu a falsidade material do Constitutum, tendo-a, contudo, como válida, porque efetivamente representou “vontade de doar” coincidente com a de “receber a doação”. Também tachado de materialmente falso, pelo menos quanto à sua autenticação, é o Tratado de Tordesilhas, pelo qual Portugal e Espanha partilharam o território descoberto por Colombo, incluindo o Brasil. O pesquisador Ricardo Ramon Blanco descobriu recentemente que falso é pelo menos o selo com o qual se procurou autenticar o instrumento do Tratado existente na Torre do Tombo, em Portugal. Isso porque o exemplar encontrado em Santos, no Mosteiro do Carmo, revela que o selo aplicado à via arquivada na Torre do Tombo é de Jaime, o Conquistador, que viveu no século XIII, dois séculos antes...(10) Pablo Pereira, Selo do Tratado de Tordesilhas é Falso (cf. O Estado de S.Paulo, 30/1/96 Ricardo Ramon Blanco, entrevista ao mesmo jornal, 23/10/88, p.12.10 Outro falso que agitou o País inteiro foi o das cartas atribuídas a Artur Bernardes(11) Hélio Silva, 1922 – Sangue na Areia de Copacabana, p.57.11 e que inseriam expressões agressivas contra os militares e principalmente contra Hermes da Fonseca, qualificado como sargentão sem compostura. O Clube Militar reagiu com violento manifesto à Nação, criou-se um clima a que se chamou de “nova questão militar”, as Forças Armadas protestaram e a imprensa teve assunto para muitos meses. Contestadas por Artur Bernardes, as cartas foram submetidas a perícia grafotécnica, que deu pela autenticidade, motivo pelo qual foram consultados peritos famosos. Na França o perito Locard, então considerado o maior do mundo em grafotécnica, confirmou a autoria num laudo sintetizado na frase “em toute évidence et en toute certitude, les deux lettres sont authentiques”. Emissários de Artur Bernardes partiram para a Itália, onde obtiveram laudo do não menos famoso Ottolenghi, logo depois secundado por Bischoff, diretor do Instituto de Ciência Política da Lausanne, ambos concluindo pela falsidade da letra e assinatura. Para reforçar seu instrumental defensivo, Artur Bernardes obteve de Rui Barbosa parecer opinando pela falsidade, com base em presunções estritamente jurídicas, tais como o de que só merece ser questionado o documento suspeito de falsidade se tiver, pelo menos, procedência aceitável. Segundo Rui, esse foi o critério que levou o povo americano a rejeitar a imputação, ao presidente Washington, da autoria de sete cartas que ele declarou serem apócrifas: “Foi o que se deu com as cartas de Washington, a que já me referi. Provado o embuste da preliminar, isto é, provado que Billy nunca fora feito prisioneiro pelos adversários – e muito menos no lugar e circunstâncias alegadas, - patente ficou logo que as cartas eram apócrifas. E, malgrado a assombrosa habilidade do falsário, que, aliás, nunca foi descoberto, o povo americano, com o seu admirável bom senso, deu-lhes, daí por diante, o crédito que mereciam, e não perdeu tempo em investigações posteriores. É o que, na minha opinião, e pelas razões acima declaradas, já devia ter acontecido, há muito, no Brasil, com este caso, em torno do qual estamos vendo girar, com tão inconcebível gravidade, a política nacional.”(12) Idem, p.86-88.12 Enfrentando a celeuma, a candidatura de Artur Bernardes à Presidência da República foi mantida, não tanto porque ele negasse a autoria das cartas, mas porque a seu lado postou-se Washington Luís, com o peso que tinha como presidente de São Paulo. Realizada a eleição, Bernardes ganhou por 466.000 votos contra 317.000 dados a Nilo Peçanha, seu adversário. Passado algum tempo, o País foi surpreendido com declaração de Oldemar Lacerda, confessando que por motivos políticos havia engendrado as cartas e encarregado da falsificação gráfica um tal de Jacinto Guimarães Edmundo. Apesar de tudo isso, em fins de 1980, os jornais noticiaram o encontro, no cofre da firma Hermann Stoltz, guardada pelo advogado Sidney Haddock Lobo, de uma carta de 26 folhas pela qual Jacinto Guimarães desmentiu o desmentido feito em 1921 e declarava que, na verdade, as cartas foram efetivamente escritas e assinadas por Artur Bernardes...(13) Claudio Lacerda, “Documento revela um segredo histórico” (O Estado de S.Paulo, 7/12/80).13 Outro falso atualmente confesso e, por isso inquestionável, foi o famoso Plano Cohen, com base no qual o general Góis Monteiro pediu a Getúlio Vargas, e obteve, a ruptura da ordem constitucional e a instituição do Estado Novo. Sabe-se agora que o Plano Cohen foi forjado pelo general Mourão Filho, para ser atribuído aos comunistas e justificar a deflagração de medidas repressivas contra eles. Sendo integralista, Mourão imaginou um esquema para guerrear os ferozes adversários dos “camisas verdes”. Mas o resultado foi além de seu projeto. Conta-se que o general Góis ficou com o documento e quando seu autor tentou recupera-lo, o superior hierárquico (na época Mourão era capitão) silenciou-o com esta advertência: “Você é oficial do Estado-Maior, tomou conhecimento deste documento aqui. Cale a boca e retire-se”. Os dias se passaram e tudo acabou na implantação do Estado Novo...(14) Hélio Silva, 1937 – Todos os golpes se parecem, p. 387.14 Cronologicamente, segue-se outro documento falso, a carta Brandi, dizendo que Jango Goulart havia importado ilegalmente da Argentina certa quantidade de madeira, por preço superfaturado, para ajudar no financiamento da campanha eleitoral de Getúlio Vargas. Depois de utilizar a Carta Brandi em violenta campanha na imprensa e na tribuna do Congresso, Carlos Lacerda reconheceu a falsidade.(15) Carlos Lacerda, Depoimento, p. 123.15 A assinatura do general Costa e Silva foi questionada em diversos documentos. Ao que sei, pelo menos uma delas chegou a ser objeto de decisão judicial. Em ação movida contra a União pelo capitão de corveta Dalmo Honaiser, sustentou-se que o general Costa e Silva já estava infartado em 26 de agosto e, assim, não podia ter assinado, no dia 27, o decreto reformando o autor. Decidindo a causa, o juiz Agosto Fernandes Dias da Silva admitiu que um chefe do Estado pode confiar a pessoas de sua confiança papel assinado em branco para posterior inserção do texto, razão pela qual julgou improcedente a ação. Depondo como testemunha, dona Yolanda Costa e Silva afirmou que, no dia 26 de agosto, seu marido sentiu-se mal, abraçou-a emocionado e tentou escrever alguma coisa, mas sua mão direita já estava paralisada. Perguntada se o general teria assinado antes algum papel em branco, d. Yolanda irritou-se e, para acalma-la, o juiz ponderou que o fato não teria maior gravidade se confiado o papel a pessoa de confiança do signatário.(16) Cf. O Estado de S. Paulo, 19/4/79, p.7, e 12/5/79, p.6.16 Curioso também o caso do Decreto federal n. 94.233/87, em cuja publicação constou o nome do ministro Dílson Funaro, que, todavia, não o havia assinado. Por estar ausente, seu nome foi inserido “em confiança”, segundo registrou, na edição de 20.4.88, “O Estado de S.Paulo”, nas “Notas e Informações”, que é seu editorial mais importante, tanto que só vai ao prelo depois de passar pelo crivo da cúpula do jornal. Nesse editorial, verberou-se a omissão do ministro, que, mesmo diante da nulidade formal do decreto, revolveu assina-lo “a posteriori”, mediante promessa de ser logo depois revogado, já que o considerava danoso ao Tesouro Nacional. Como a revogação jamais aconteceu, o decreto acabou produzindo todos os efeitos, que o ministro julgava desastrosos... Artifício de grande significação histórica foi também o adotado pelo presidente do Congresso, Senador Auro Moura de Andrade, que, atendendo a sugestão do Senador Afonso Arinos, mandou parar o relógio do plenário para que pudesse ser votado “dentro do prazo”, que se vencia à meia noite, o projeto de reforma constitucional enviado pelo presidente Castelo Branco. Esse fato vazou para a imprensa, tanto que, também nas “Notas e informações”, o “Estadão” a ele se referiu nestes termos: “É fato histórico, por exemplo, que o Congresso, sendo obrigado, por Ato Complementar, a votar o projeto de Constituição enviado pelo presidente Castello Branco até meia-noite de determinado dia de 1966, o senador Auro Moura Andrade, presidente do Congresso, parou o relógio do plenário para que os minutos não corressem e a votação pudesse ser concluída de maneira ordenada e da melhor forma possível para a democracia de então”.(17) Cf. O Estado de S.Paulo, edição de 11.7.90, pág.3.17 E não se tem notícia de que alguém suscitasse a ineficácia da reforma constitucional votada fora do prazo... Inúmeros são, como se vê, os documentos falsos, ou de duvidosa autenticidade, que produziram efeitos históricos e jurídicos irreversíveis, contrariando-se, portanto, o entendimento de que nulos, ou pelo menos ineficazes, são os atos decorrentes de documentos apócrifos. Ao contrário, parece que os efeitos se tornam tanto mais irreversíveis quanto maior a importância do documento falso... De fato, ninguém de bom tino seria capaz de argüir a nulidade dos efeitos produzidos durante séculos pelo Constitutum Constantini, pelo Tratado de Tordesilhas, e, excusez du peu, pelos textos legais mencionados, inclusive alguns que pudessem ter sido enxertados em papéis em branco assinados antecipadamente por um presidente da República enfermo e nas vésperas da total inconsciência... Tão fascinante é o assunto que me abalancei a escrever sobre ele, menos com a intenção de esgota-lo do que para sugerir aos pesquisadores e aos doutos que o enfrentem com elementos mais fartos e com erudição que me falta.
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Article Number
3942
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