Notícia n. 3873 - Boletim Eletrônico IRIB / Agosto de 2002 / Nº 523 - 07/08/2002
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
523
Date
2002Período
Agosto
Description
O separado de fato ante a união estável e a sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo - Paulo Roberto de Carvalho Rego* - Vem sendo usual a apresentação para registro, em títulos e documentos, de instrumentos particulares de declaração de união estável, com o fito de tornar público o fato e provar a data de sua constituição, bem como para os fins de amparo concedido pelas disposições contidas no artigo 226, § 3°, da CF/88 e nas Leis Federais 8.971/94 e 9.278/96. Sucede que, em alguns casos, um (ou os dois) declarante(s) informa(m) o estado civil de casado(s). Visando regular sua relação, têm começado a surgir declarações de sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo, pretendendo regular o patrimônio comum. A questão vem merecendo acalorada discussão entre os profissionais do direito, entendendo uma corrente que, em ambas as hipóteses, o registro é possível para os fins civis pretendidos outra parte entende que, no primeiro caso, estando em vigor o artigo 240 do Código Penal, tipificada resta a figura penal do adultério e que, portanto, haveria vedação ao registro porque tal ato implicaria crime, além de ser moralmente reprovável. Na segunda hipótese, a minoria entende ser impossível o registro de sociedade de fato entre pessoas do mesmo sexo – porque a Constituição Federal enfatiza a união estável somente entre pessoas de sexos opostos – enquanto a maioria entende que, visando a efeitos meramente patrimoniais, decorrentes da sociedade de fato, tal registro seria possível. Quid júris? A) O separado de fato e a união estável I. – A tese da impossibilidade do registro A primeira corrente, minoritária, entende que há vedação ao registro porque implicaria na aceitação de um fato criminoso, eis que reconhecido estaria o cometimento do crime de adultério, tipificado no artigo 240 do Código Penal pátrio, que se encontra ainda em vigor e que, ademais, tal conduta seria imoral. Por essas razões, haveria a vedação ao registro, por força do contido nos artigos 115 e 156 da Lei 6.015/73. Esses, em síntese, são os fundamentos da corrente contrária, minoritária, ao registro. Eles serão objeto de exame pormenorizado pela corrente contrária, motivo pelo qual dispensamo-nos de examiná-los, exaustivamente, neste tópico, de modo a evitar sua repetição desnecessária e tornar menos cansativa a leitura. II. – A tese da possibilidade do registro a) Histórico O registro de títulos e documentos surgiu, segundo Kioitsi Chicuta, em razão de que, “desde tempos imemoriais, o homem tem demonstrado intensa preocupação de perpetuar atos e fatos relevantes (inscrições e desenhos em pedras)”[1] Cf “Registros Públicos e Segurança Jurídica”, Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, pág. 76.1 etc. No Brasil, ainda segundo o renomado especialista, “sua origem como serviço sistematizado pelo Estado” recebeu regramento original nos títulos 78 e 80 do Livro I das Ordenações do Reino de 1603, e foi atribuída, à época, aos tabeliães (aos quais, aliás, eram atribuídos todos os atos dos serviços hoje denominados extrajudiciais). Com o desenvolvimento da sociedade, os serviços de registros públicos, pouco a pouco, foram especializando-se e, em razão de suas finalidades específicas, foram segmentados por naturezas (Registro de Hipotecas, posteriormente Registro de Imóveis Registro de Títulos, Documentos e outros Papéis e Civil de Pessoas Jurídicas etc.). Assim, no ano de 1903, pelo Decreto Federal n° 973, foi criado, na cidade do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, o serviço público correspondente ao “primeiro ofício privativo e vitalício do registro facultativo de títulos, documentos e outros papéis, para autenticidade, conservação e perpetuidade dos mesmos e para os efeitos previstos no artigo 3° da Lei 79, de 1892”. Posteriormente, face ao sucesso da medida e à necessidade de sua implantação, outras unidades foram criadas nos demais Estados Federados. Em 28 de setembro de 1906, foi instalado em São Paulo o primeiro ofício de registro de títulos e documentos e civil das pessoas jurídicas. Em 1° de janeiro de 1916, revogando as ordenações, alvarás, leis e outras normas, foi sancionada a Lei n° 3.071, consolidando o Código Civil Brasileiro, que, em seu Livro III, Título I, Capítulo IV (arts. 129 e seguintes), disciplinou os meios de prova dos atos jurídicos, regulando os institutos. Sucederam-se as normas[2] Em 7 de fevereiro de 1924, foi sancionado o Decreto Legislativo n° 4827, reorganizando os registros públicos instituídos pelo Código Civil e, em 24 de dezembro de 1928, fazendo-se necessário disciplinar em âmbito federal sua execução, foi editado o Decreto n° 18.542.2, até que, em 31/12/1973, foi sancionada a Lei n° 6.015, que vige até o momento, disciplinando, nos seus artigos 127 e seguintes, o registro de títulos e documentos. Ocorre que, em razão de originalmente acometidos os serviços aos tabelionatos de notas e, posteriormente, aos ofícios de registro de imóveis, os usos e costumes inerentes a esses serviços nortearam a tônica da prática cartorária, muitas vezes olvidando a própria razão de ser do registro de títulos e documentos e outros papéis, sendo-lhes exigidos rigor e solenidades não prescritos em lei. Sucede que os bens da vida juridicamente protegidos, por exemplo, pelo registro de imóveis são diversos dos protegidos nos registros de títulos e documentos: nos primeiros, visa-se proteger um fim, o direito de propriedade (direito real, que exige forma solene) nos segundos, o que se visa proteger é o próprio meio, ou seja, o título ou documento, o meio de prova que dará ensejo à proteção de eventual direito ou obrigação. Quer dizer, aqui a solenidade pode não ser da essência do ato ou fato pretendido provar e que, para tanto, necessita registro, seja quanto ao seu conteúdo (o qual não deverá ficar ao arbítrio do registrador examinar), para alcançar efeitos decorrentes de sua publicidade, seja para adquirir autenticidade, seja, enfim, para mera conservação ou prova de data. Assim, os serviços atribuídos aos oficiais do segmento, desde sua origem e como traduz sua denominação, são os atos de registro de títulos, documentos e outros papéis, e não somente de títulos ou instrumentos (a utilização da conjunção aditiva “e” seguida do vocábulo “documentos”, que tem significação jurídica própria, não podendo ser havida como ignorância do legislador, muito menos sua insignificância – porque “a lei não contém palavras inúteis”, como ensinava a famosa máxima de Carlos Maximiliano, amparada em antigo axioma[3] “leges, nihil in eis debet esse inutile, ac superfluum, sine ministério aliquid operando” (Leis em nada devem ser inúteis, e supérfluas, sem produzirem algum efeito), in Axiomas e Lugares Comuns de Direito, de Simão Vaz Barbosa Lusitano, apud Regras de Direito de Augusto Teixeira de Freitas, ed. Lejus, 2000, pág. 132).3). Por relevante para a compreensão do tema, faz-se aqui necessário lembrar a clássica distinção entre instrumento, documento e papel, onde instrumento é o meio que dá forma a ato jurídico gerador de direitos e/ou obrigações à(s) parte(s) documento é qualquer meio de prova material por escrito e, papel é o meio material de prova de menor relevância no mundo jurídico, mas que, por motivos pessoais, pode igualmente ser objeto de registro para mera conservação, publicidade e prova de data. Enfoque importante dessa distinção está em que, se nos registros imobiliários são fundamentais conteúdo e forma, no registro de títulos e documentos essa importância é relativa, porque, às vezes, o objeto da proteção jurídica, o interesse juridicamente tutelado é a proteção ao meio, ao início de prova por escrito contido em uma declaração ou escrito particular. Sabendo-se que os atos jurídicos provam-se por qualquer meio material de provar um direito ou uma obrigação nele inserida (artigos 135 e 136 do Código Civil), seu conteúdo e sua forma têm relevância reduzida, não sendo razoável obstar o registro do meio de prova, o qual será objeto de apreciação judicial competente. Poderá, assim, uma parte ter legítimo interesse de registrar esse início de prova por escrito, esse documento, para lhe dar publicidade ou autenticidade, fazendo prova de sua data, e, nada mais razoável, que abrir-lhe as portas do serviço extrajudicial, para assim fazê-lo. É curial que houve toda uma técnica jurídica na criação dos institutos, formando um sistema, um todo integrado. Aqui, todavia, ficou relegada, pelos costumes cartorários, a um segundo plano, sem qualquer razão, obstando, alguns registradores, a possibilidade de registro por temer afrontar a lei, como se o sistema de registros fosse um fim em si mesmo e não um meio de atender às necessidades das partes, da sociedade, do povo, seu usuário e razão de sua existência. Operadores do direito, atuando na esfera preventiva desse junto às partes, atentos aos reclamos da sociedade, os oficiais, ora proponentes, preocupados em dar eco aos desejos comuns e certos de que sua atividade está vinculada à lei, cuja interpretação e integração deverá ser norteada pelo Poder Judiciário, regrando-a através de atos normativos, animam-se em propor a uniformização de entendimentos, de modo a corresponder aos anseios da população. Ademais, é certo que a valoração da prova é competência do Poder Judiciário, no caso concreto, não sendo razoável (princípio da razoabilidade) obstar registro de meio de prova, cujo efeito merecerá apreciação judicial. O registro visa à segurança jurídica das partes. O registro não altera a natureza das coisas, o meio usado não altera o fato, pelo simples registro em títulos e documentos. Garante-lhe, todavia, a publicidade e a prova da data, na qual exarado. Os efeitos que irão gerar, nos casos concretos, serão objeto de apreciação judicial. O que não nos parece recomendável é impedir a publicidade e a prova da data da existência, do meio de prova por escrito, que será valorado em Juízo. De igual modo, face às várias alterações legislativas ocorridas no último século, faz-se necessário dar maior transparência aos atos de registro, mais uma vez em garantia do princípio da segurança jurídica necessária, e entregá-la aos operadores do direito, em especial, e ao povo, em geral. A importância da menção histórica do sistema dos registros de títulos e documentos e outros papéis para validade contra terceiros e sua conservação, portanto, está em que, desde os seus primórdios, o legislador previu a necessidade e a possibilidade de conferir maior transparência e segurança à população pelo registro de seus títulos, documentos e papéis em serviço próprio do Estado, hoje descentralizado, porém, ainda público. b) União estável X casamento A primeira confusão que surge no exame do tema é a pretendida equiparação entre os regimes jurídicos do casamento e da união estável. Sabe-se da influência religiosa em nosso regramento jurídico. Porém, não está acima do contrato social espelhado na Constituição Federal como fruto dos anseios da sociedade e da construção jurisprudencial que a incentivou. E é curial que o legislador constitucional, representante maior da sociedade brasileira, preferiu a criação de um instituto novo, a união estável, ao subdividir como gênero a célula mater da família em três grandes grupos: os das pessoas que, livremente, optaram relacionar-se pelo casamento, pela união estável ou que mantêm, por fatalidade ou escolha, uma comunidade familiar, regulando-os, distintamente. O primeiro, subdividido nas espécies do casamento civil (artigo 236, §1°, da CF/88) e o casamento religioso (artigo 236, §2°, da CF/88) o segundo, uma inovação, a união estável (artigo 236, §3°, CF/88) e o terceiro, outra modernidade, a comunidade entre pais e descendentes (artigo 236, §4°, CF/88). Quisesse o legislador constituinte igualar todas as entidades familiares admitidas, não as teria subdividido em espécies e, muito menos, disporia que cada tipo de entidade familiar seria regido por lei própria (idem, ibidem). Lex, si aliud vuluisset, expressiset (a lei, se o quisesse, o expressaria). Como da dicção do comando constitucional, não se deflui a igualdade, mas mera equiparação para efeito da proteção estatal (vide artigo 236, §3°, da CF/88), não poderá, data venia, o intérprete igualar. A igualdade somente se dá, de forma plena, entre iguais, nunca entre meros assemelhados. In casu, o constituinte distinguiu expressamente. Enfocada a questão sob o princípio hermenêutico da técnica legislativa, torna-se mais fácil compreender por que o casamento mereceu regramento no Código Civil, em sua Parte Especial, Livro I, Título I, artigos 180 a 314 o casamento religioso está regrado no Decreto-Lei 3.200, de 19/4/1941, e na Lei 6.015, de 31/12/1973, artigos 71 a 75 a união estável encontra-se regida pelas Leis 8.971/94 e 9.278/96, especiais e a comunidade familiar, dispensável maior regramento, encontra-se regida completamente pelo §4° da Carta Política de 1988. Desses regramentos específicos e, portanto, especiais, retiram-se regras próprias para cada instituto, donde se vê um maior rigor formal para o casamento, onde são previstas formalidades preliminares (arts. 180 a 182), impedimentos (arts. 183 a 191), forma de celebração (arts. 192 a 201), meios de prova específicos (arts. 202 a 206), nulidades (arts. 207 a 224), disposições penais (arts. 225 a 228), efeitos jurídicos (arts. 229 a 232), direitos e deveres do marido (arts. 233 a 239), direitos e deveres da mulher (arts. 240 a 255), regime de bens entre cônjuges (arts. 256 a 311), e, reguladas até as doações antenupciais (arts. 312 a 314), ficando sua dissolução, já por conta dos usos sociais, regrada pela Lei 6.515, de 26/12/1977, que revogou os arts. 315 a 324 do Código Civil. Já a união estável, por não se confundir com aquele instituto, mereceu regramento próprio, primeiro quanto aos direitos alimentícios e sucessórios ensejados, através da Lei 8.971, de 29/12/1994, e quanto à sua definição jurídica, e regulamentação propriamente dita, conforme se deflui de seu título, que “regula o §3° do art. 226 da Constituição Federal”, pela Lei 9.278, de 10/5/1996, a qual, em seu artigo 1°, define o que é a união estável no artigo 2°, rege os direitos e deveres dos conviventes os arts. 3° e 4° foram vetados no artigo 5°, dispõe sobre o patrimônio constituído após sua constituição o art. 6° foi igualmente vetado e os arts. 7°, 8° e 9°, tornam a dispor sobre alimentos, sucessão e competência, respectivamente. Desse simples confronto, reforça-se a idéia de que o legislador quis distinguir os institutos, porque regulou a união estável em lei especial, subtraindo, ao reconhecimento da união estável, todo o formalismo exigido ao casamento, ao dispor, em seu artigo 1°, que, “é reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objetivo de constituição de família”. Quer dizer, é reconhecida, porque é um fato jurídico, e se constitui, como fato que é, pela convivência duradoura, ou seja, o simples fato da habitualidade da relação, com o elemento subjetivo da intenção de constituir família. Tudo matéria de fato e, portanto, de prova. E não podia ser diferente, porque o legislador constitucional, ao equiparar a união estável, não ao casamento (tanto que dispôs da necessidade da facilitação de sua conversão nesse outro instituto[4] Vida Constituição Federal, artigo 236, §3°, parte final.4), mas ao gênero família, o fez em atenção à existência de vários núcleos familiares marginalizados, mas cuja existência em nada poderia afrontar a moral e refletia os usos comuns da atualidade social. E, desde os Estatutos da Universidade de Coimbra, já se sabia que a “sólida inteligência da lei depende do acertado conhecimento do verdadeiro espírito delas”[5] Cf. Estat. Cit., Liv. 2, Tít. 2°, Cap. 7°, §5°, apud Princípios do Direito Divino, Natural, Público, Universal, e das Gentes, Adotados pelas Ordenações, Leis, Decretos, e mais Disposições do Reino de Portugal, de Augusto Teixeira de Freitas, ob cit,. pág.311).5, bem como que “Leis devem acomodar-se aos costumes dos povos no que for justo e honesto”[6] cf. Alvará de 7 de junho de 1755 princ., apud Teixeira de Freitas, ob. Cit. pág. 315).6 e ninguém poderá discordar do acerto do legislador constituinte ao reconhecer efeitos jurídicos a esses fatos. O direito nada mais é do que o retrato da sociedade em movimento, sendo ditado por ela e não para ela. Ademais, o direito, como ciência, é informado por diversas fontes. A fonte maior, a Constituição Federal, considerando as alterações havidas na família brasileira e visando proteger as novas células surgidas da união estável entre homem e mulher, reconheceu-a como entidade familiar, independentemente do casamento (CF/88, artigo 226, §3°). Do fato da existência da união estável, decorre a proteção do Estado, sem exigência de qualquer outro requisito e sem confusão entre esse instituto e o do casamento, não se aplicando, àquele, regras inerentes a esse. Assim, as restrições impostas ao casamento não podem ser impostas à união estável. Restrições interpretam-se restritivamente. E a importância dessa distinção está em demonstrar que o estado civil dos declarantes é irrelevante para o ato de registro da declaração de união estável. Assim, o separado de fato, cujo estado civil tecnicamente correto é, ainda, o de casado, não pode ter obstado o registro de sua declaração porque os impedimentos matrimoniais não se aplicam à união estável. É certo que houve, em um primeiro momento, face às disposições da Lei 8.971/94, o entendimento de que a união estável estaria sujeita aos requisitos previstos no seu artigo 1°. Todavia, melhor observando a referida lei, colhe-se que, naquela, o que se visa resolver, inclusive de forma declarada em seu título, são os reflexos patrimoniais da união estável (alimentos e sucessão), mormente considerando-se a possibilidade da coexistência de interesses de cônjuges anteriores, companheiros e prole. Quer dizer, essa lei não veio para definir a união estável, mas, apenas, para resolver conflitos inadiáveis de interesse, decorrentes dessas relações, sob os aspectos sucessório e alimentar. Por isso, posteriormente, foi sancionada a Lei 9.278/96, a qual, nos termos da Constituição Federal, efetivamente definiu e regulou, por completo, o instituto, sem qualquer das restrições enunciadas na lei anterior. Assim sendo, ainda que se pudesse admitir que a união estável poderia sofrer as restrições contidas, no artigo 1° da Lei 8.971/94, para seu reconhecimento, com o advento da Lei 9.278/96, tais restrições estariam ab-rogadas pela lei nova. Nesse sentido, a jurisprudência dos nossos tribunais, conforme demonstra o decidido na apelação cível 1999.001.19355, da 7a Câmara Cível do TJRJ, Relatora Desembargadora Marly Macedônio França: “Alimentos. União estável. Estado civil dos companheiros. Irrelevância face à Constituição e à nova ordem legal vigente. Na vigência da Lei 9.278/96, a inexistência de impedimento para o casamento não é mais condição para o reconhecimento da união estável e o conseqüente direito à percepção de alimentos. Destacando que, se assim o fosse, estaria em confronto com a norma constitucional do §3° do artigo 226, que não prevê tal condição. Recurso provido.” Nem se diga que a orientação à facilitação da conversão em casamento seria indicativo da sujeição do novel instituto ao do matrimônio porque, ao se fazer necessária, a conversão, é porque não são iguais. E a desigualdade está, justamente, na informalidade do novo instituto, que é matéria exclusivamente de fato. Ex facto jus oritur, sem qualquer solenidade, ao contrário do casamento, que é ato solene. Ademais, é de se observar que a união estável não se constitui com o registro, mas pelo simples fato da convivência duradoura, com animus de constituir família. Veja-se, inclusive, que a Lei 9.278/96 não dispôs nenhum impedimento para o reconhecimento da união estável, diferindo do Código Civil que, ao regular os impedimentos para o casamento, dispôs, expressamente, que “não podem casar as pessoas casadas” e “o cônjuge adúltero com o seu co-réu, por tal condenado”[7] Cf artigo 183, incisos VI e VII, do Código Civil em vigor.7. Aqui, caberia adaptar outro adágio para dizer que ubi lex distiguit, distinguere habemus.[8] Teixeira de Freitas, ob. Cit. pág. 130, contrario sensu. 8 Sendo nosso sistema jurídico um todo ordenado, não se vislumbra o aparente conflito de normas defendido pela corrente que inadmite o registro quando um dos declarantes é casado, porém separado de fato, e que já constituiu família, de fato, nova. c) A moral e os costumes Questão mais difícil de ser analisada é o plano da moral e dos bons costumes, face à sua subjetividade. Abstraído o positivismo, objetivo acima já examinado e que ampara o registro, adentremos o exame da matéria subjetiva, alavancada como impediente ao registro. O conceito de Moral, no sentido filosófico, significa o “conjunto de regras de conduta consideradas como válidas, quer de modo absoluto para qualquer tempo ou lugar, quer para grupo ou pessoa determinada (cf. ética)”[9] Cf. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, ed. Nova Fronteira, 1a. ed., pág. 950.9. Dessa simples interpretação léxica, retira-se que, de forma alguma, o dispositivo constitucional fere a contemporânea moral da sociedade brasileira. Ao contrário, vai ao encontro dos anseios dessa, regulando e admitindo, como entidade familiar, também a formada por homem e mulher que mantiverem união habitual, com intenção de constituir família. Estudando a filosofia do direito, o maior jusfilósofo brasileiro de nosso tempo, Miguel Reale[10] In Filosofia do Direito, ed. Saraiva, 19a. ed., 3a. tir., 2002,.10, voltando aos primórdios do conhecimento filosófico humano, ensina que, para Aristóteles, “o problema da justiça reduz-se ao da igualdade, que se apresenta em dois momentos: igualdade entre iguais e igualdade entre desiguais. Às vezes, a igualdade é absoluta, porquanto se refere a coisas que se trocam, tanto por tanto mas, outras vezes, a igualdade se realiza entre homens desiguais. A justiça comutativa é aquela que preside às trocas, porquanto se presume que, na compra e venda, o valor da coisa adquirida corresponda ao preço pago. Nas relações dos homens surge, no entanto, uma outra lei de igualdade, que é aquela que manda tratar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualem, dando-se a cada um o que é seu, consoante ditame da justiça distributiva. O Estado não pode tratar igualmente os indivíduos, situando no mesmo plano o criminoso e o santo. Há desigualdades naturais, assim como há graduação na virtude e no crime, de modo que a justiça distributiva deve atender, proporcionalmente, ao mérito e ao demérito de cada um”.[11] Ob. Cit. pág. 641. 11 E é claro que, sob esse prisma, a união habitual, de fato, entre homem e mulher, não é igual à união submetida ao casamento, mas essa desigualdade não chega ao ponto de ignorá-los como entidade familiar. Prosseguindo o estudo histórico da matéria, observa Reale que, na Idade Média, prevaleceu a Teoria Tomista, porque “Santo Tomás de Aquino demonstra senso muito agudo e compreensivo da vida humana e de suas contingências (ratio pratica est circa operabilia, quae sunt singularia et contingentia), ensinando que mais de uma solução particular pode ser compatível, em certo tempo e lugar, com os imperativos da lei natural. Dentre os vários caminhos conciliáveis com as exigências racionais, cabe ao legislador fazer a escolha segundo critérios de utilidade”[12] Ob cit. pág. 640. 12, complementando que, “Santo Tomás aprecia o problema da justiça, segundo ensinamentos de Aristóteles em sua monumental Ética a Nicomano, mas desenvolve uma distinção que ficara de certa forma apenas esboçada: a de ‘justiça legal’, com a qual se completa a trilogia do justo.”[13] Ob. Cit. pág. 640. 13 “O que determina o dever dos indivíduos para com o todo, a sociedade, o Estado? É a justiça legal ou, como mais tarde se disse, a justiça social. Um dos grandes méritos de Santo Tomas, a nosso ver, foi ter dado à justiça legal ou justiça social a preeminência entre todas as virtudes. A justiça por excelência não é a comutatividade das trocas, ou a corretiva do domínio penal, nem a distributiva, mas, antes, a justiça que traça o caminho das obrigações e dos deveres das partes para com o todo. Estas obrigações são determinadas por lei, tendo como centro o poder do legislador, a quem cabe apreciar as circunstâncias variáveis, sem ultrapassar o âmbito da discricionariedade traçado pela ‘lei natural’. A socialidade da justiça, desse modo tão claramente evidenciada, é submetida a uma análise percuciente, a propósito da alterabilidade ou da alteritas, lembrando, ainda, que é dentro dessa concepção geral que se situa a célebre definição de Direito legada por Dante, na qual é mister apontar uma contribuição nova, um sentido mais acentuado de ‘socialidade, a convicção profunda de que o direito é um fato social, de cuja vigência depende a sociedade toda’. ”[14] Ob. Cit. págs. 641 a 642. 14 Passando à Idade Moderna, ensina que “na Idade Média existia um sistema ético subordinado a uma ordem transcendente, o homem renascentista procura explicar o mundo humano tão-somente segundo exigências humanas”. Lembrando a doutrina de Hugo Gróci, lembra que “há uma passagem característica, na qual declara que a justiça possui fundamento de razão, de maneira tão inamovível, que ela existiria mesmo que, por absurdo, Deus não existisse. Embora afirmada a existência de Deus, não é dessa idéia que decorre a legitimidade da ordem justa: é justa por ser expressão de ditames da razão”. Por isso, com o Renascentismo, “o dado primordial passa a ser o homem mesmo, orgulhoso de sua força racional e de sua liberdade, capaz de constituir por si mesmo a regra de sua conduta”. É por isso que surge, desde logo, a idéia de contrato. “O contratualismo é a alavanca do Direito na época moderna. Por que existe a sociedade? Porque os homens concordaram em viver em comum. Por que existe o Direito? O Direito existe, respondem os jusnaturalistas, porque os homens pactuaram viver segundo regras delimitadoras dos arbítrios”[15] Ob. Cit. pág. 646. 15, lembrando a clássica doutrina de Jean Jacques Rousseau, em seu Contrato Social. “Para Rousseau, o homem natural é um homem bom que a sociedade corrompeu, sendo necessário libertá-lo do contrato social de sujeição e privilégios para se estabelecer um contrato social legítimo, conforme a razão.”[16] Ob. Cit. pág. 647. 16 Surge, então, o contratualismo parcial, no dizer de Hugo Grócio, “para quem a sociedade é um fato natural, oriundo do appetitus societatis surge, porém, o Direito Positivo como resultado de um acordo ou de uma convenção”. A partir desses conceitos históricos, conclui Miguel Reale que “o Direito tem como destino realizar a Justiça, não em si e por si, mas como condição de realização ordenada dos demais valores, o que nos levou, certa feita, a apontá-lo como o ‘valor franciscano’, cuja valia consiste em permitir que os demais valores jurídicos valham, com base no valor da ‘pessoa humana’, valor-fonte de todos os valores”[17] Ob. Cit. pág. 712 a 713. 17, de onde surge a idéia da tridimensionalidade do Direito, reconhecendo que, “nas doutrinas ora examinadas, se acentua a tensão entre fato, valor e norma, elementos que o moralismo jurídico procura em vão compor na unidade das exigências éticas”[18] Cf. o moralismo jurídico de Viktor Cathrein, o Direito Natural de Grócio e o Moralismo Jurídico de Georges Ripert, dentre outros – págs. 481 e ss, em especial pág. 492.18, lembrando que, “ao lado dos puros ditames racionais, vai-se abrindo lugar para a contribuição positiva da vontade, das estimativas sociais e das mutações históricas. Essas novas orientações traduzem, em última análise, o desejo quase que universalmente sentido de uma Jurisprudência que tenha em conta a realidade jurídica, com abandono de explicações unilineares e redutivistas, conciliando-se as exigências axiológicas com as técnico-formais, em crescente harmonia com a existência e o aperfeiçoamento da comunidade”[19] Ob. Cit. pág. 492. 19. De todo o subjetivismo teórico e de sua natural prolixidade retira-se que os conceitos de Justiça e Moral estão intimamente ligados ao conceito de Ética. E – é trivial – que Ética é o “estudo dos juízos de apreciação (ou seja, de valor), que se referem à conduta humana suscetível de qualificação (ou seja, de subsunção à fattispécie legal) do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente a determinada sociedade, seja de modo absoluto”. (cf. Moral (1) e Hética)[20] In Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa, ed. Nova Fronteira, 1a. ed., pág. 594.20 Por isso, o valor humano concedido à família transcende qualquer limite religioso ou traz qualquer ofensa ao direito natural, que surgiu com o homem muito antes da convenção do casamento. Como negar aos conviventes modernos o direito de constituir família, apenas porque não coadunam com o rigorismo do casamento? Como negar a essa entidade ou sua prole o direito de pertencer a uma família? Sensibilizado por esses valores superiores e ciente da conduta humana moderna, onde o casamento já não é mais indissolúvel pela vontade dos cônjuges, onde é comum a convivência habitual, o legislador constitucional preferiu dar fim à hipocrisia e reconhecer direito a essas entidades familiares, concedendo-lhes, também, a proteção Estatal. Vê-se, pois, que, também a moral, com os avanços da sociedade e a revisão dos dogmas religiosos e éticos, admite e protege a relação de convivência, sem qualquer vedação a que ela se dê entre homens e mulheres, sem qualquer distinção aos separados de fato, sendo de se ressaltar que, para que haja a habitualidade e a intenção de constituir família, essa relação não poderá constituir-se entre pessoa casada que mantém o casamento e outra relação extraconjugal, concomitantemente, porque incompossíveis, face aos elementos da habitualidade e da intenção de constituir família, que é una. Assim, o convivente separado de fato, mas ainda casado de direito, poderá, sim, sem ferir qualquer valor moral ou ético, constituir família, para efeitos de proteção do Estado. d) O crime de adultério De outro lado, mesmo sob a ótica penal, focado o adultério, a existência desse não inibe nem torna sem efeito a união estável, existente entre o separado de fato, equivocadamente tido como adúltero, e terceiro. Em primeiro lugar, porque mesmo o legislador de 1940, reconhecia que a ação penal tem natureza privada, e, por isso, “somente pode ser intentada pelo ofendido e dentro de um mês após o conhecimento do fato”[21] Cf. artigo 240, §2°, do Código Penal.21, realçando, com isso, a ausência do interesse estatal em coibir o fato e em admiti-lo, quando de sua habitualidade, consentida tacitamente. Em segundo, porque o mesmo legislador estabeleceu a inadmissibilidade da ação penal pelo “cônjuge desquitado”[22] Cf. artigo 240, §3°, do Código Penal.22, porque findo o dever de fidelidade, previsto no artigo 231 do Código Civil. Em terceiro, porque previu a inaplicabilidade da pena, ao dispor que “o juiz pode deixar de aplicar pena se havia cessado a vida em comum dos cônjuges”[23] Cf. artigo 240, §4°, do Código Penal.23, deixando claro, já antes da equiparação da união estável à entidade familiar, que o Estado não via interesse em punir, ao separado de fato, porque finda a obrigação de fidelidade, não sendo razoável obrigar o “descasado de fato” a submeter-se a eventuais caprichos do cônjuge que não admitia conceder o desquite, ou, posteriormente, a separação ou o divórcio, sendo mesmo regra fundamental a liberdade de associação (eis que, antes da Constituição de 1988, a união estável era reconhecida como sociedade de fato, para efeitos patrimoniais). Além disso, não é fato desconhecido do legislador que, face à miséria que grassa no Brasil, há pessoas desprovidas, mesmo, do capital necessário ao casamento ou à dissolução desse, esta face à necessidade da contratação de advogado para assistência no processo, obrigatoriamente judicial. Por que negar aos necessitados o direito de constituir família? Aqui a igualdade tem, forçosamente, de ser geral, porque, segundo o princípio da razoabilidade, não é admissível distinguir o ser humano por suas posses. É certo, também, que, apesar de vetusto, o crime de adultério, ainda não foi revogado. Porém, não é menos certo que, abstraídos eventuais reflexos da área penal, já bastante reduzidos, como vimos, a união estável entre o “adúltero” e terceiro gera efeitos, inclusive patrimoniais e alimentares, entre os conviventes, razão pela qual, para proteção desses direito
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
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3873
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pt_BR