Notícia n. 3088 - Boletim Eletrônico IRIB / Novembro de 2001 / Nº 399 - 12/11/2001
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
399
Date
2001Período
Novembro
Description
Palestra 5 - 5º painel HABITAÇÃO POPULAR NO ESTATUTO DA CIDADE Marcelo Terra - Advogado e Asessor do Secovi-SP - O Estatuto da Cidade nitidamente se preocupa com a regularização fundiária como meio de conferir aos que residam em habitações subnormais a possibilidade de integração à cidadania, mediante a certeza e a estabilidade de uma propriedade, a tranqüilidade de um endereço, a sensação, enfim, de participação na cidade. Quando aqui penso no Estatuto da Cidade, nele incluo a Medida Provisória n.º 2.220, de 4 de setembro de 2001, que "dispõe sobre a concessão de uso especial de que trata o § 1º do art. 183 da Constituição, cria o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano - CNDU e dá outras providências." Dentre as diretrizes gerais elencadas no art. 2º, do Estatuto da Cidade, guardam conexão com a pauta desta exposição a garantia do direito a cidades sustentáveis, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana para as presentes e as futuras gerações (inciso I), a ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar a utilização inadequada dos imóveis urbanos (inciso VI, alínea "a") e a deterioração das áreas urbanizadas (inciso VI, alínea "f") e a poluição e a degradação ambiental (inciso VI, alínea "g") e a regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda, mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação sócio-econômica da população e as normais ambientais (inciso XIV). Eis, aí, no inciso XIV, a diretriz "regularização fundiária", mas não a mera regularização, e sim a regularização fundiária acompanhada da urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda. O processo de urbanização dessas áreas se fará mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação. (...) Como se dá a regularização fundiária? Pela usucapião e pela concessão de uso especial para fins de moradia. Usucapião especial urbana Comecemos pela usucapião especial de imóvel urbano regrado no art. 9º. O imóvel passível da usucapião especial é o urbano, terreno ou edificação (casa, apartamento) de área máxima de 250,00m² (duzentos e cinqüenta metros quadrados), não esclarecendo o art. 9.º se se trata de área construída ou de área de terreno, devendo a jurisprudência se inclinar pelo critério de área de terreno. O imóvel usucapiendo há de se destinar necessariamente às finalidades de moradia (art. 9.º). A ação de usucapião seguirá o rito procedimental previsto no Código de Processo Civil, mas de forma sumária (art. 14). Inova, também, o Estatuto da Cidade ao dispor (art. 13) que se a usucapião especial de imóvel urbano tiver sido invocada como matéria de defesa, a sentença que a reconhecer valerá como título para o registro no cartório, evitando que o possuidor ajuíze nova e especial ação de usucapião. O título a se registrar na matrícula é o usual mandado, expedido nos autos da ação, onde se declarar que posse se transformou em domínio. O Estatuto da Cidade altera a redação do item 28, do inciso I, do art. 167, da Lei n.º 6.015, acrescentando que as sentenças declaratórias de usucapião serão registradas, independentemente da regularidade do solo ou da edificação, certamente com fundamento doutrinário de que a usucapião é forma originária e não derivada de aquisição da propriedade. Esquece o Estatuto da Cidade das questões operacionais do registro do mandado de usucapião, quando o bem nele objetivado se situa em prédio de habitação coletiva (os condomínios da Lei n.º 4.591/64). O § 1.º do art. 9.º traz, repetindo a determinação constitucional, um curioso e supérfluo comando ao determinar que o título de domínio seja conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. Se o autor da usucapião urbana for somente o homem ou somente a mulher, o imóvel lhes pertencerá segundo as regras do regime de bens. Porém, se o autor for solteiro, separado, divorciado ou viúvo, naturalmente o título de domínio somente a ele se referirá. Se, por hipótese, viva no regime da união estável (Lei n.º 9.278, de 10 de maio de 1.996) antes mesmo do ajuizamento da usucapião, sua (seu) companheiro (a) terá o direito assegurado pela lei da união estável. Se a usucapião for requerida por um homem e uma mulher, independentemente de seu estado civil, serão eles declarados proprietários em regime condominial ordinário, com idênticos quinhões de propriedade. A sucessão na posse somente se permite ao herdeiro legítimo que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão do antecessor (art. 9.º, § 3.º). Em decorrência de sua especialidade, a usucapião urbana não se admite ao mesmo possuidor mais de uma vez (art. 9.º, § 2.º), preceito de difícil controle, por não existir um registro centralizado, restando ao julgador verificar as informações prestadas ao Imposto de Renda. Novidade mesmo se encontra no art. 10, disciplinador da usucapião especial urbana coletiva, desde que preenchidos os seguintes e requisitos cumulativos: a) que a área urbana seja maior dos que os 250,00m² específicos para a ação individual b) que seja ocupada por população de baixa renda (sem detalhamento do que se entende como baixa renda) c) que não haja meios de se identificar os terrenos ocupados por cada possuidor d) que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. Aliás, a intenção legislativa é extremamente interessante, pois traz à legalidade uma propriedade imobiliária, gerando novos negócios, revestindo o morador do status de proprietário, possibilitando-lhe acesso ao mercado formal de trabalho e de crédito e de financiamentos. São legitimados à propositura dessa usucapião especial (art. 12) o possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originário ou superveniente (inciso I), os possuidores, em estado de composse (inciso II) e a associação de moradores da comunidade, como substituto processual dos possuidores, desde que regularmente constituída, com personalidade jurídica (expressão pleonástica, pois a associação regularmente constituída é automaticamente dotada de personalidade jurídica com o registro de seus atos constitutivos no registro civil das pessoas jurídicas, na forma do art. 18, do Código Civil. Assim, não há associação regularmente constituída despida de personalidade jurídica, devendo a associação se encontrar explicitamente autorizada pelos representados (inciso III) ao requerimento da usucapião especial urbana. Reside, aqui, uma enorme complexidade dominial e registrária: a associação de moradores será legitimada como substituto processual (Código de Processo Civil, art. 6º), mas os efeitos declaratórios de domínio ingressão no patrimônio individual de cada possuidor. Portanto, todos deverão que encontrar devidamente identificados em atendimento aos ditames da lei de registros públicos (art. 176, inciso III, n.º 2, alínea "a"). Penso que a legitimação processual à associação de moradores se restringe à hipótese do art. 10, onde não for possível a identificação dos terrenos ocupados individualmente. Havendo meios de localização e individualização do imóvel possuído, a legitimidade ativa é exclusivamente do possuidor unitariamente ou em litisconsórcio. Ocorrendo a impossibilidade de identificação de cada terreno objeto da usucapião especial, vou mais além e afirmo que a legitimação será única e exclusivamente da associação de moradores e não dos possuidores diretamente e em seu próprio nome, exatamente por força da não individualização do bem objeto do pedido. Determina o § 3.º, do art. 10, que, em sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe. Para tanto, se fará absolutamente indispensável que, em petição inicial, se precisem os possuidores por estirpe, isto é, por quantidade de unidades habitacionais e não por cabeças, por número de pessoas. Se uma determinada unidade habitacional pertencer em composse a mais de uma pessoa, sobre essa fração ideal se instituirá o regime condominial ordinário. Aventa esse mesmo § 3.º, do art. 10, que, havendo acordo entre os condôminos, o juiz poderá, em sentença, estabelecer frações ideais diferenciadas. Evidentemente, esse acordo há de abranger somente os compossuidores interessados na fixação de diferentes percentuais (um mais, outro menos), sem necessidade da oitiva e anuência dos demais. Se, após a sentença, alguns condôminos desejarem alterar suas frações, deverão proceder a uma operação de alienação imobiliária com as formalidades e as tributações decorrentes. A sentença da usucapião especial urbana coletiva, além de declarar domínio constitui o condomínio especial (expressão até agora reservada na lei brasileira) ao condomínio dividido em unidades autônomas. Cuida-se, sem dúvida, de um condomínio especialíssimo, mais especial do que o tradicional especial regrado na Lei n.º 4.591/64. O § 4.º, do art. 10, atribui a esse condomínio o caráter de obrigatório, mas nem tanto, pois admite sua extinção por deliberação majoritária - dois terços - desde que posteriormente ao registro do mandado judicial constitutivo do condomínio especial se execute a urbanização da gleba. Haverá, aqui, partes e coisas comuns de todos? E os corredores de acesso às habitações? Mais um preceito vazio de toda e qualquer preocupação de ordem prática, pois não esclarece o que vem a ser o processo de urbanização (dotar a região de luz, água, esgoto, vias públicas, praças, áreas institucionais), nem sinaliza se a extinção condominial se perfaz mediante a individualização objetiva das unidades, que passariam a ser autônomas, ou por intermédio de um processo de regularização do parcelamento, onde cada unidade se constitua em um lote de terreno, desvinculado juridicamente de todos os demais da mesma gleba regularizanda. Penso que a hipótese da extinção do condomínio especial via parcelamento regularizado é a mais factível, passando-se pelo processo preconizado no art. 40, da Lei n.º 6.766/79. O condomínio especial do Estatuto da Cidade ficou no meio do caminho entre o condomínio por quotas do Código Civil e o dividido em unidades autônomas da Lei n.º 4.591/64. Na realidade, parece-me que de especial tal condomínio nada tem, mais se assemelhando ao condomínio ordinário na modalidade da comunhão "pro diviso", onde a posse de cada comunheiro é exercida de modo exclusivo e sem concorrência de qualquer outro compossuidor, até porque é condição de sua constituição a impossibilidade de identificação do terreno ocupado pelo possuidor (art. 10). Curiosamente, o § 5.º, do art. 10, se preocupou em disciplinar que a administração condominial será sempre decidida pelos condomínios recentes, observado o quorum da maioria de votos. Considerando que nada se diz a respeito dos órgãos de representação - síndico e subsíndico -, de administração - síndico, auxiliado ou não por um administrador e de deliberação - assembléias gerais, entendo aplicáveis supletivamente as normas da Lei n.º 4.591/64, como única forma de tentar solucionar impasses operacionais que na certa advirão de tão especialíssimo condomínio. Sendo coativo o condomínio especial, vinculativa a todos, ainda que discordantes ou ausentes as deliberações da maioria, as despesas comunitárias também se revestirão da natureza de obrigatórias, tal como no condomínio em unidades autônomas, cujas regras de cobrança aqui também se estenderão subsidiariamente. Uma vez constituído o condomínio especial do art. 10, a alienação ou oneração por um condômino objetivará uma fração ideal do todo e a cessão e transferência da posse localizada (mas não precisa), sem necessidade de outorga de direito de preferência aos demais consortes. O registro da alienação ou oneração se lançará na matrícula do imóvel usucapido coletivamente, porque não se abrirá matrícula para a unidade do condômino. A aplicação prática da usucapião coletiva suscitará, também, inúmeras outras questões de natureza processual civil. Exemplificativamente, como se fará a prova da posse "ad usucapionem" se não é possível a identificação dos terrenos ocupados individualmente pelos possuidores? E se algum possuidor não demonstrar sua posse? Qual a conseqüência para o sucesso da ação coletiva? Proposta a ação de usucapião especial urbano, sobrestar-se-ão quaisquer outras ações, petitórias ou possessórias, propostas relativamente ao imóvel usucapiendo (art. 11), nela intervindo obrigatoriamente o Ministério Público (art. 12, § 1.º), o que de resto já acontece em qualquer ação de usucapião, beneficiado o autor dos benefícios da justiça e assistência judiciária gratuita, inclusive perante o cartório de registro de imóveis (art. 12, § 2.º). O imóvel usucapiendo (individual ou coletivamente) não poderá ser bem público, mantida a vedação preexistente, posto não existir no Estatuto da Cidade qualquer norma derrogatória daquela outra em relação à usucapião coletiva, mantida a vedação constitucional da ação individual de que os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião (art. 183, § 3.º). Vale a lembrança de importante decisão da 1a. Vara de Registros Públicos de São Paulo em ação de usucapião de um barraco de madeira, parte de um lote maior, com outra parte certa e localizada ocupada por terceiros. Partindo da premissa da impossibilidade da divisão física dos imóveis, haja vista sua própria configuração geodésica em terreno que só possui uma frente para a via pública, em corredor de acesso que passa pelo primeiro barraco e, também, da impossibilidade de uma servidão de passagem por este corredor, uma vez que existe um banheiro de uso coletivo situado aos fundos do terreno, entendeu o Magistrado que melhor seria a instituição de um condomínio, estabelecendo-se a fração ideal de cada unidade, critério mais justo e adequado do que a divisão em metade ideal, pura e simplesmente. Assim, foram julgados parcialmente procedentes ambas as ações para declarar, por usucapião, o domínio sobre o imóvel, compreendendo terreno e benfeitorias, v.g., ambos os barracos e o banheiro coletivo, abrindo-se matrícula para tanto. Determinou-se que, em seguida, o Oficial abrisse uma matrícula para cada unidade habitacional, atribuindo-se a casa 1 para um grupo de autores e a casa 2 para outros. Mais um curioso aspecto trazido pelo Estatuto da Cidade na usucapião especial coletiva, desta vez relativamente à tributação da propriedade imobiliária. Como se fará a inscrição imobiliária e o lançamento tributário? Pelo todo? Pelas frações ideais, embora não discriminadas, não extremadas umas das outras? Notas 27 Em setembro de 2.001, apresentei o trabalho "O Registro Imobiliário no Estatuto da Cidade", quando da realização do XXVIII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, promovido pelo IRIB, do qual extraio a quase integralidade do texto que se segue. O tema objeto de mencionado trabalho é muito maior amplitude do que o ora desenvolvido. 28 Em ação reivindicatória, objetivando o desalojamento de uma favela instalada em propriedade particular e consolidada há vários anos, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu pelo perecimento do direito de domínio e pela improcedência da ação reivindicatória, considerando que o imóvel reivindicado é uma mera abstração jurídica, pois a favela é uma realidade urbana, tendo vida própria, dotada de equipamentos urbanos (Ap. Cível 212.726-1/8, Rel.: Des. José Osório, 8a. Câm. Cível, v.u., julg. em 16 de dezembro de 1.994, in RT-723/204, acompanhada de excelentes comentários de Alcides Tomasetti Jr.). 29 Vide meu trabalho "O usucapião como modo de instituição da propriedade horizontal", publicado no volume "Registro de Imóveis - Estudos de Direito Registral, relativo ao XXIII Encontro, co-edição do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil e de Sergio Antonio Fabris Editor, 1.997, pág. 93. 30 Em sua edição de 13 de agosto de 2.001, o jornal Folha de São Paulo (Caderno A, pág. 11) noticia palestra efetuada na cidade do Rio de Janeiro pelo economista peruano Hernando de Soto (autor do livro "O mistério do capital") sobre sua tese a respeito da legalização da propriedade da população pobre. Segundo o economista, a falta de propriedade legalizada é um entrave para o desenvolvimento econômico e as propriedades não-regularizadas devem ser classificadas como "capital morto". 31 Henrique Ferraz de Mello lembra que a pluralidade de partes é normalmente repelida, podendo o magistrado limitar o número de litigantes, a teor do art. 46, parágrafo único, do Código de Processo Civil ("Algumas notas sobre o Estatuto da Cidade", Boletim Eletrônico do IRIB/ANOREG-SP n.º 351, de 1.º de agosto de 2.001, editado por Fátima Rodrigo e Sérgio Jacomino). 32 O aglomerado urbano consistente em favelas tem gerado outras discussões de natureza processual a respeito da legitimidade passiva em eventual ação possessória ou petitória promovida pelo titular do direito ameaçado ou esbulhado. Em primoroso voto, o Juiz de Direito Nelson Hanada entendeu como hábil petição inicial de ação de reintegração de posse que só nominou dois dos invasores, ou esbulhadores, porque razoavelmente impossível a indicação dos demais, tudo fundamentado em doutrina de Chiovenda quanto à representação de todos por alguns, mesmo não se podendo falar em personalidade jurídica desse conjunto de pessoas, nem mesmo em personalidade simplesmente judiciária (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, Mandado de Segurança n.º 293.445, 8a. Câmara, v.u., julg. em 24 de novembro de 1.981, cópia em JE/Pasta 35/NCPC/F/28, arquivo pessoal do signatário). 33 Decisão prolatada pelo Juiz de Direito Henrique Ferraz de Mello nos processos 956/89 e 1334/93 em 21 de março de 1.997 (cópia no arquivo pessoal do autor, JE/6.817). (...)
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
3088
Idioma
pt_BR