Notícia n. 3086 - Boletim Eletrônico IRIB / Novembro de 2001 / Nº 399 - 12/11/2001
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
399
Date
2001Período
Novembro
Description
Palestra 3 - 5º painel USUCAPIÃO COLETIVO E HABITAÇÃO POPULAR Francisco Eduardo Loureiro - Juiz de Direito - Assessor da Presidência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - 1. Introdução O tema proposto para breve abordagem no Seminário "O Estatuto da Cidade" versa sobre o recente instituto do usucapião coletivo e habitação popular. Sabido que o instituto do usucapião tem tradicional origem no direito privado, estudado pelo ângulo individual de modo original de aquisição da propriedade pela posse prolongada e qualificada. Não há, porém, como estudar o instituto do usucapião coletivo pela lente individualista e liberal do direito civil, porque o seu propósito não é apenas o de criar um novo modo de aquisição da propriedade imóvel, mas sobretudo o de ordenar a propriedade urbana, funcionalizando-a pela observância de princípios urbanísticos voltados ao bem estar da pessoa e da comunidade. Toda interpretação dos artigos 9 a 14 do Estatuto da Cidade, portanto, deve ser voltada a examinar o usucapião como mecanismo de regularização fundiária e sobretudo de reorganização urbanística. O intérprete, portanto, deve fazer um permanente exercício para libertar-se dos dogmas do direito privado e analisar o instituto com os olhos voltados para os princípios constitucionais. 2. O sentido das normas Constitucionais dos artigos 182 e 183 da Constituição Federal e os princípios fundantes do ordenamento jurídico. Os artigos 182 e 183 da Constituição Federal dispõem sobre a política urbana e estão diretamente conectados aos direitos fundamentais da pessoa e aos princípios fundantes do ordenamento. Visam os referidos dispositivos ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, assim como regular o usucapião especial urbano. Não há como estudar o direito constitucional sem vê-lo como um todo orgânico. Como explica o autorizado Jorge Miranda, o direito não é a mera soma de fórmulas avulsas, mas sim o ordenamento, ou conjunto significativo, que implica coerência, consistência e projeta-se em um sistema. Está o nosso ordenamento voltado para os seus princípios fundantes, entre nós previstos nos artigos 1º a 4º da Carta Política. São, certamente, as normas mais relevantes e talvez as menos estudadas do nosso sistema. Dentre tais princípios, avultam, para estudo do presente tema, o da dignidade da pessoa humana, o do prestígio do valor social do trabalho, o objetivo de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. A dignidade da pessoa, na expressão de Pietro Perlingieri "confere a cada um o respeito inerente à qualidade de homem, assim como a pretensão de ser colocado em condições idôneas a exercer as próprias aptidões". É por isso que não há como desligar, nem por um só momento, o bem estar dos habitantes da cidade, previsto no capítulo da política urbana, dos direitos fundamentais da pessoa, voltados à garantia da dignidade, prestígio do trabalho e erradicação da pobreza. É esse norte que deve orientar toda e qualquer leitura do Estatuto da Cidade e de seus novos institutos, que vieram dar concretude à norma até então não exeqüível do artigo 182 da Constituição Federal. 3. O Estatuto da Cidade e a efetivação dos direitos constitucionais. A interpretação do Estatuto e a funcionalização da propriedade imobiliária. Está o Estatuto da Cidade, de modo correto, todo voltado ao seu fim precípuo, qual seja, o de dar exeqüibilidade ao artigo 182 da Constituição Federal. Basta, para constatar tal assertiva, ler os seus artigos 1º e 2º, que consagram princípios - diretrizes gerais - afinados com os objetivos da Carta Política. Raymond Piper, City-Lights, 1998 Há preocupação permanente do legislador em destacar a todo o momento a preservação de valores tutelados pela Constituição Federal, como a função social da propriedade, a defesa do meio ambiente saudável, da segurança e do bem estar da população urbana. Dentre as diretrizes traçadas no artigo 2º do Estatuto, com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, interessa-nos, para efeito de estudo do usucapião coletivo, a estampada no inciso XIV, in verbis: " a regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas e situação socioeconômica da população e as normas ambientais" A primeira observação a ser feita é a de que o usucapião coletivo foi um dos instrumentos jurídicos escolhidos pelo legislador para dar concretude à norma de eficácia contida e promover a efetivação de valores constitucionais. A interpretação das poucas normas relativas ao usucapião coletivo, portanto, deve ser feita não mais utilizando critérios arraigados e tradicionais do direito privado, que têm em mira apenas a aquisição da propriedade individual, mas sim voltada para a funcionalização do instituto e a consecução de valores sociais. Não custa lembrar, aqui, que o direito privado posto em nosso Código Civil, fruto da escola liberal oitocentista, trata de regular, na lição de Gustavo Tepedino, "a atuação dos sujeitos de direito, notadamente o contratante e o proprietário, os quais, por sua vez, nada mais aspiravam senão o aniquilamento de todos os privilégios feudais: poder contratar, fazer circular as riquezas, adquirir bens como expansão da própria inteligência e personalidade, sem restrições ou entraves legais". Criou-se a ilusão da completude do ordenamento, que regularia todos os possíveis centros de interesse jurídico e garantiria a estabilidade de regras do jogo negocial, pautado na utopia da igualdade formal das partes. O século XX assistiu, de um lado, a derrocada da utopia da completude da lei e, de outro, a crescente complexidade das relações jurídicas, das quais já não mais dava conta o Código Civil. A par disso, houve radical transformação na elaboração das Constituições que, a partir das Cartas do México, de 1917, e de Weimar, de 1919, passaram a abarcar os direitos individuais e ingressaram, de modo decidido, em matérias antes limitadas ao direito privado. Diz-se que as Constituições modernas deixaram de regular somente as garantias de liberdade dos cidadãos frente ao Estado, para também conceder direitos sociais e, sobretudo, servir de escudo contra o despotismo econômico, numa função promocional. Em vista dos inúmeros dispositivos contidos nas longas Cartas modernas acerca de temas relativos à família, à propriedade, ao contrato e, sobretudo, aos direitos fundamentais da pessoa, é que se tornou moeda corrente a expressão direito civil constitucional. O eixo do sistema jurídico é agora a Constituição Federal, que não só passou a tratar de temas antes circunscritos ao direito privado, como também a iluminar, com seus princípios cardeais - dignidade e solidariedade - toda a legislação infraconstitucional. Houve, por assim dizer, uma mudança de rumo no ordenamento, que refletiu na despatrimonialização e personalização do direito civil. Além disso, o direito moderno tem por característica a utilização permanente dos estatutos (Criança e Adolescente, Consumidor, Locação), que retiram blocos inteiros de matérias antes reguladas pelo Código Civil. Tais estatutos ostentam, segundo Gustavo Tepedino, uma alteração profunda na técnica legislativa, porque: a) definem objetivos concretos, que vão muito além da simples garantia de regras estáveis para os negócios b) o legislador fixa diretrizes e estabelece metas a serem atingidas, define programas e políticas públicas para o atendimento de determinadas necessidades c) valem-se de cláusulas gerais, abrangentes e abertas, em detrimento da tipificação taxativa d) há alteração na linguagem do legislador, menos jurídica e mais setorial e) além de coibir comportamentos indesejados, em atuação repressiva, o legislador age através de incentivos e vantagens, acentuando a função promocional do direito. Reitera-se, por isso, a importância da compreensão do Estatuto e dos novos instrumentos jurídicos como meios de concreção de normas constitucionais, princípios fundantes do sistema e dos direitos fundamentais da pessoa. O objetivo explicitamente posto pelo legislador, a tarefa que incumbe ao usucapião coletivo, é dupla: regularizar a situação fundiária e permitir a urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda. Notas 22 Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, Coimbra Editora, 3ª Edição, 1.996, tomo II, p. 223 a respeito da construção da idéia de sistema jurídico, que desborda do tema deste simples estudo, confira-se, ainda, Judith Martins Costa, A Boa-Fé no Direito Privado, Editora Revista dos Tribunais, 2.000, parte I e a obra clássica de Claus-Wihlelm Canaris, Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, 2ª Edição Calouste Gulbenkian, 1.996. 23 Pietro Perlingieri, Perfis do Direito Civil - Introdução ao Direito Civil Constitucional tradução de Maria Cristina de Cicco, Editora Renovar, 1.997, p. 36. 24 Gustavo Tepedino, Premissas Metodológicas para a Constitucinalização do Direito Civil, in Temas de Direito Civil, Editora Renovar, 1.999, p. 3. 25 Joaquín Arce Florez-Valdez, El derecho civil constitucional, Madrid: Civitas, 1991, p. 178-179 ver, também, Konrad Hesse, Derecho constitucional y derecho privado, tradução de Ignacio Gutiérrez Gutiérrez, Madrid: Civitas, 1995, p. 81-88. 26 Gustavo Tepedino, ob. cit., ps. 8-9. 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