Notícia n. 3083 - Boletim Eletrônico IRIB / Novembro de 2001 / Nº 399 - 12/11/2001
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
399
Date
2001Período
Novembro
Description
Palestra 2 - 4º painel O VALOR ORDEM URBANÍSTICA E SUA TUTELA JUDICIAL Rodolfo de Camargo Mancuso - Professor de Direito da USP - A qualificação jurídica do valor ordem urbanística. O art. 53 do chamado Estatuto da Cidade (lei nº 10.257/2.001) veio acrescer um inciso (III) ao art. 1º da lei da ação civil pública (nº 7347/85), fazendo com que o (já dilatado) objeto daquela ação passe a abranger a defesa do valor ordem urbanística. Significa dizer que a ação civil pública prevista na lei 7347/85 para "responsabilidade por danos morais e patrimoniais" (caput do art. 1º) causados a diversos interesses metaindividuais - meio ambiente, consumidor, patrimônio natural e cultural, infração à ordem econômica e à economia popular e bem assim qualquer outro interesse difuso ou coletivo (incisos daquele art. 1º) -, pode agora também ser ajuizada sob color de lesão a mais um interesse metaindividual juspositivado, a saber, a citada ordem urbanística. Dado que nesse rol já constam alguns valores típicos ou nominados, sendo que o inciso V (agora renumerado) traz uma cláusula de extensão, disponibilizando a ação para "qualquer outro interesse difuso ou coletivo" (fórmula de resto perfilhada ao final do inciso III do art. 129 da CF), põe-se, preliminarmente, a questão de saber: ( i ) se a lei nº 10.257/2.001 veio dispor ex novo, isto é, de modo a deflagrar, a partir de sua vigência, a judicialização de conflitos envolvendo a ordem urbanística, ou, (ii ) ou se o acesso daquele interesse à Justiça já antes era possível, por conta de rubricas antes juspositivadas, como meio ambiente bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico ou mesmo em face da citada cláusula de extensão - "qualquer outro interesse difuso ou coletivo". Esse questionamento pressupõe uma perquirição sobre duas possibilidades: ou bem certos valores esparsos pela sociedade como um todo, num dado momento ganham suficiente concreção e densidade quanto à sua relevância social, passando, pour cause, a merecer a devida tutela judicial ou bem essa judiciabilidade remanesce virtual, contida, no aguardo da vontade política do Estado, a quem cabe o poder-dever de identificar e normatizar condutas, ocorrências, interesses e valores, assim propiciando sua apreciação judicial quando lesados ou ameaçados, no que se costuma chamar a garantia da ubiqüidade da justiça (CF, art. 5º, XXXV). Este último enfoque, mais pragmático, acomoda-se à concepção tradicional da condição da ação dita possibilidade jurídica do pedido (CPC, art. 295, par. único, III), entendida como a necessária previsão em abstrato, no ordenamento, da pretensão deduzida em Juízo, significando, em breves palavras, que o que não está juspositivado não é judicializável. Todavia, entendendo-se que a instrumentalidade do processo tem dentre seus escopos a facilitação do acesso à Justiça hoje a impossibilidade jurídica do pedido há de se entender restrita a casos extremos, diríamos quase teratológicos, quando desde logo esteja evidente que o pedido - assim como seu fundamento - discrepam do ordenamento positivo, mostrando-se com este incompatíveis, de sorte a tornar inútil a instauração do processo, como por exemplo quando se pretenda a penhora de bem público, ou a cobrança de dívida oriunda de jogo. Nos demais casos, impende não barrar desde logo a prestação jurisdicional, para não correr o risco de baralhar o direito de ação (que é abstrato) com o mérito da pretensão (saber se ela é ou não fundada). Como dizem Cintra, Grinover & Dinamarco: "Constitui tendência contemporânea, inerente aos movimentos pelo acesso à justiça, a redução dos casos de impossibilidade jurídica do pedido (tendência à universalização da jurisdição). Assim, p.ex., constituindo dogma a incensurabilidade judiciária dos atos administrativos pelo mérito, a jurisprudência caminha no sentido de ampliar a extensão do que considera aspectos de legalidade desses atos, com a conseqüência de que os tribunais os examinam" . Cândido Rangel Dinamarco chega mesmo a avançar nesse ponto: "O máximo que se consegue obter é um grau muito elevado de probabilidade, seja quanto ao conteúdo das normas, seja quanto aos fatos, seja quanto à subsunção destes nas categorias adequadas. No processo de conhecimento, ao julgar, o juiz há de contentar-se com a probabilidade, renunciando à certeza, porque o contrário inviabilizaria os julgamentos". Sob esse enfoque, digamos, holístico ou ao menos teleológico da relação processual, como instrumento de acesso à Justiça, parece inegável que o controle judicial sobre vários tópicos componentes da ordem urbanística já se mostrava viável ainda antes que o Estatuto da Cidade viesse a inserir tal rubrica, expressis verbis, dentre os interesses metaindividuais arrolados nominalmente no art. 1º da lei 7347/85, visto tratar-se - a ordem urbanística - de um valor notoriamente relevante, de sorte a tornar judicializáveis por definição as afrontas contra ele perpetradas. Aliás, a percepção de que somente os conflitos deflagrados entre direitos subjetivos possam aceder à apreciação judicial, está praticamente superada, hoje se disponibilizando a via jurisdicional também para os conflitos relevando de outras posições jurídicas, tais os interesses legítimos e os direitos reflexamente protegidos. Ao propósito, escreve José Carlos Barbosa Moreira: "desde que se esteja persuadido - e o consenso, a tal respeito, vai-se tornando universal - da necessidade de assegurar aos titulares proteção jurisdicional eficaz, não importará, tanto, basicamente, saber a que título se lhes há de dispensar tal proteção. Afinal de contas, inexiste princípio a priori segundo o qual toda situação jurídica subjetiva que se candidate à tutela estatal por meio do processo deva obrigatoriamente exibir carta de cidadania entre os direitos, no sentido rigoroso da palavra". Aliás, o urbanismo, por sua própria natureza, mostra-se um campo fértil para os embates entre massas de interesses, por exemplo, nas operações urbanas consorciadas (arts. 32 a 34 do Estatuto da Cidade), onde o interesse dos empreendedores imobiliários em conseguir o melhor potencial adicional de construção, pagando a menor contrapartida, possivelmente seja objeto de resistência pela Administração Pública. Dessa intensa litigiosidade, própria do embate entre interesses metaindividuais, já falamos em outra sede, lembrando que "a ordenação do solo urbano contraria interesses dos especuladores imobiliários..." , razão pela qual houvemos por bem inserir aquele quesito em nosso conceito de interesse difuso. Em trabalho vindo a lume em 1999, José Carlos de Freitas retomaria o mote, explicando que "enquanto estes (os especuladores imobiliários) buscam retirar o máximo de aproveitamento econômico dos imóveis, utilizando o maior potencial construtivo do solo de qualificação urbana, de outro lado as posturas urbanísticas incidem para limitar, por exemplo, a altura das edificações, seus recuos e os usos permitidos, visando garantir as condições de estética, segurança, salubridade e conforto para os citadinos (direito de propriedade versus direito coletivo a uma cidade planejada). Ilustram essa conflituosidade, também, as situações em que o mesmo espaço urbano é disputado, de um lado, por grevistas em passeata ao longo de uma via de grande circulação, e, de outro, os motoristas e passageiros de transporte coletivo, que desejam circular em condições livres e desimpedidas (direito de reunião e de manifestação versus direito de locomoção)". Seguindo na perquirição sobre a qualificação jurídica do valor ordem urbanística, verifica-se que na técnica legislativa, quando o legislador identifica e denomina certos valores - mas não pretende (ou não é possível/conveniente) excluir outros congêneres - costuma valer-se das chamadas cláusulas genéricas, de extensão, ou de encerramento, as quais podem tomar diversa formulação, mais analítica, ou mais sintética. Exemplo do primeiro caso é o par. 2º do art. 5º da CF, dizendo que o elenco dos direitos e garantias constitucionais (incisos I a LXXVII desse artigo) "não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte" exemplo do segundo caso é a dicção do inciso III do art. 129 da CF, disponibilizando ação civil pública para tutela do "patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos". Aproveitando a deixa, o legislador ordinário, ao ensejo da promulgação do Código de Defesa do Consumidor (1990), tratou de inserir no art. 1º da lei da ação civil pública (7347/85) um inciso (V, na nova numeração) com a cláusula "qualquer outro interesse difuso ou coletivo", ao tempo em que estendeu ao contexto da lei 7347/85 a parte processual do CDC (cf. art. 117 da lei 8078/90). Assim, quando um texto se utiliza dessas fórmulas abertas, é lícito supor que a mens legis é de cunho abrangente, assim autorizando exegese elástica, de sorte a permitir a inserção dos demais itens periféricos aos valores-núcleo, nominadamente identificados pelo legislador. No ponto, Hugo Nigro Mazzilli: "Inexiste taxatividade de objeto para a defesa judicial de interesses transindividuais. Por isso, além das hipóteses já expressamente previstas em diversas leis (defesa do meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, crianças e adolescentes, pessoas portadoras de deficiência, investidores lesados no mercado de valores mobiliários, ordem econômica, economia popular) - quaisquer outros interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos podem em tese ser defendidos em juízo por meio da tutela coletiva, tanto pelo Ministério Público como pelos demais co-legitimados do art. 5º da LACP e art. 82 do CDC". Pelas razões que vamos expondo, parece sustentável que antes da lei 10.257/2.001, tópicos subsumidos no valor ordem urbanística já comportavam tutela jurisdicional, como por exemplo o valor estética urbana, enquadrável na rubrica "bens e direitos de valor (...) estético", ( inciso IV, renumerado, do art. 1º da lei 7347/85), e isso mesmo já houvéramos sustentado em estudo específico sobre o flagelo da pichação urbana, conduta que ao depois, em boa hora, viria tipificada no bojo da lei dos crimes ambientais (nº 9.605/98, art. 65). Ainda, caberia lembrar hipótese também por nós antes estudada - o problema das lombadas nas vias públicas - observando José Carlos de Freitas que "a colocação indiscriminada de lombadas (redutores de velocidade transversais) sobre o pavimento das ruas prejudica o fluxo do tráfego, causa congestionamentos, constitui fator de risco aos ocupantes dos veículos, acarreta gastos extras para o automobilista (freios, pneus, sistemas de direção/suspensão e combustível) e prejudica a estética da via pública. Os equipamentos urbanos, além de seu conteúdo utilitário, cumprem função de embelezamento plástico da cidade, razão por que também compõem o patrimônio público como bens e valores estéticos, turísticos e paisagísticos". De resto, o inciso IV (ora renumerado) do art. 1º da lei 7347/85, ao contemplar os valores artísticos, estéticos, históricos, turísticos e paisagísticos, não deixa dúvida de que os danos infligidos a tais valores por certo que afrontam a ordem urbanística, como pode dar-se, por exemplo, se um sítio arqueológico é depredado ou se é demolida a fachada de um imóvel de particular beleza. A primeira conclusão, portanto, é que o valor ordem urbanística, decodificável em múltiplos aspectos, é socialmente relevante de per si, e, como tal, já beneficiava da devida tutela judicial, particularmente no plano da jurisdição coletiva, independentemente, pois, de expressa juspositivação, agora concretizada pelo art. 53 do Estatuto da Cidade. Com isso não se deslustra, minimamente, o brilho da iniciativa do legislador ao adotar tal alvitre, senão que, ao contrário, desse modo imprimiu-se maior visibilidade normativa ao interesse em causa, o que por certo virá contribuir para ampliar os horizontes de sua área de proteção. Eis assim, delineado ex vi legis como um interesse metaindividual o valor ordem urbanística, o que o credencia à tutela judicial pelos vários instrumentos que hoje dão acesso à jurisdição coletiva, com destaque para a ação civil pública. Definido esse registro, impende saber quem está credenciado a portar aquele interesse em Juízo, tendo presente que a legitimação que o constituinte reconheceu ao Ministério Público no campo dos interesses difusos e coletivos "não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei" (part. 2º do art. 129), diretriz assimilada pelo legislador ordinário, que para tal cunhou a legitimação concorrente-disjuntiva, disciplinada no art. 5º , incisos e parágrafos da lei 7347/85. (...) 5º Painel - Usucapião Coletiva e Habitação Popular - Coordenador: Sidney Sanches - Ministro do Supremo tribunal Federal O Coordenador do COHURB Dr. José Carlos de Freitas chamou para a mesa os palestrantes do quinto painel. A seguir, fez um agradecimento especial ao Irib pela renovação do convênio com o Ministério Público e chamou o Ministro Sidney Sanches do Supremo Tribunal Federal para presidir os trabalhos: Eu gostaria de externar o meu agradecimento ao Instituto de Registro Imobiliário do Brasil pelo convênio que vem sendo mantido com o Ministério Público, e que recentemente foi renovado. Esse convênio proporciona, por exemplo, eventos como este graças à sensibilidade do seu presidente Dr. Lincoln Bueno Alves, que está deixando a presidência do Instituto, mas que será substituído, ao que tudo indica, pelo Sérgio Jacomino, que entre todos os predicados também é corintiano como eu... ninguém é perfeito! Mas eu quero externar este agradecimento ao IRIB e em especial a um convênio que tende a se espalhar por outros estados da federação. Eu tenho notícias de que o Espírito Santo também está em vias de finalizar um convênio nos mesmos moldes daquele que foi firmado entre os registradores imobiliários e o Ministério Público de São Paulo. Eu só quero parabenizar o presidente do Irib, Dr. Lincoln, pela iniciativa. Quero agradecer a presença aqui de um ilustre e brilhante magistrado, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, que nos honra com a sua presença e dizer que ele prontamente acolheu nosso pedido para presidir este painel gravado por um interesse social muito grande. Eu quero agradecer ao Ministro Sidney Sanches e pedir à sua excelência que venha à mesa dos nossos trabalhos neste nosso último painel. Passo, então, a presidência dos trabalhos ao Dr. Sidney Sanches e peço que o Sr. se sinta à vontade nesta casa, em evento do Ministério Público, do Secovi e do Irib: à vontade inclusive para se manifestar, se assim desejar. Ministro Sidney Sanches: Senhoras e senhores, em primeiro lugar quero fazer um agradecimento ao Dr. José Carlos de Freitas, promotor de justiça, Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo, ao Irib e ao Secovi pelo convite que me formularam para participar deste evento e presidir um dos seus painéis. Falarão: Dr. Paulo José Villela Lomar, Dr. Francisco Eduardo Loureiro, Dra. Ermínia Maricato, Dr. Ricardo Nahat e Dr. Marcelo Terra. (A seguir, o Ministro Sidney Sanches passou a palavra a cada um dos paletrantes.)
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
3083
Idioma
pt_BR