Notícia n. 3082 - Boletim Eletrônico IRIB / Novembro de 2001 / Nº 399 - 12/11/2001
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
399
Date
2001Período
Novembro
Description
Palestras: 1º/11/01 4º Painel - Conceito de Ordem Urbanística - Coordenador: Gilberto Valente da Silva - Advogado e Assessor Jurídico do IRIB Palestra 1 - 4º painel A ORDEM URBANÍSTICA Victor Carvalho Pinto - Assessor Jurídico da Secretaria Especial de desenvolvimento Urbano da Presidência da República - Introdução O Estatuto da Cidade incluiu entre as hipóteses de ação civil pública a defesa da "ordem urbanística". Na verdade, a redação anterior da lei já admitia a proposição de ações civis públicas em matéria urbanística, através de inciso relativo a "outros interesses difusos". Apesar disto, a explicitação da matéria urbanística é importante, pois a coloca em pé de igualdade com as demais matérias explicitadas, quais sejam: o meio ambiente, o consumidor e o patrimônio histórico, artístico e paisagístico. Esta simples menção certamente estimulará em muito o estudo do direito urbanístico, notadamente entre os membros do Ministério Público e do Poder Judiciário. Além disto, poderá induzir as associações civis envolvidas com temas urbanos a se utilizarem com mais freqüência do Poder Judiciário, seja diretamente, seja em parceria com o Ministério Público. Tal atuação da sociedade civil e do Ministério Público apresentam grande importância, por um motivo muito simples. Os principais beneficiários das normas urbanísticas são os moradores da cidade, considerados conjuntamente. Entretanto, devido a sua natural dispersão, eles tendem a ser a parte mais fraca no mundo político. Muito mais ativos são os proprietários, empreiteiros, loteadores e incorporadores, segmentos cujos negócios podem ser diretamente afetados pelas normas urbanísticas. Assim sendo, a ação civil pública em defesa dos interesses difusos da sociedade é a principal esperança de aplicação prática do direito urbanístico, impedindo que ele venha a ser desvirtuado por autoridades políticas comprometidas com interesses particularistas. Introduzido o termo no direito positivo, cabe agora refletir mais detidamente sobre seu significado. Que é exatamente a "ordem urbanística"? Como toda questão jurídica, também esta tem na origem um problema prático, qual seja: como deve se dar a atuação do Poder Judiciário no campo da política urbana? Objetivos da Política Urbana A resposta a este pergunta envolve uma compreensão dos princípios e institutos de direito urbanístico. Este ramo do direito regula a atuação urbanística do poder público, que foi denominada constitucionalmente como "Política Urbana". A atuação do Estado sobre as cidades é muito intensa, excedendo em muito a intervenção geralmente verificada em outros setores da economia. Embora a maior parte dos imóveis urbanos seja de propriedade privada, esta propriedade é completamente conformada pelas normas urbanísticas. Estas são veiculadas por planos e projetos urbanísticos, que determinam os usos permitidos e os índices urbanísticos obrigatórios para cada terreno. Através destes usos e índices, o poder público define com grande precisão o tipo de construção que poderá ser feita em cada parte da cidade. Além da regulação do mercado imobiliário privado, o Estado também atua diretamente sobre as cidades, seja realizando obras públicas, seja prestando serviços públicos. Em certo sentido, os imóveis privados não podem sobreviver se não estiverem cercados de imóveis públicos. O lote privado só pode existir se tiver acesso ao sistema viário, que é de propriedade pública. Além disso, a edificação urbana precisa ser conectada a redes de infra-estrutura, através das quais são fornecidos serviços públicos como abastecimento de água, coleta de esgotos e fornecimento de energia elétrica. A política urbana tem por objetivo coordenar todas estas formas de transformação do ambiente construído, visando aumentar o bem-estar dos habitantes da cidade e promover o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade (art. 182). O Caráter Normativo da Palavra "Ordem" É claro que as cidades sempre apresentam alguma ordem em sua configuração territorial. Esta ordem pode ser de difícil apreensão, diante do aparente caos em que estão imersas muitas cidades. Entretanto, à medida em que se conhece o funcionamento do mercado imobiliário e do sistema político, é possível perceber e compreender os padrões recorrentes de desenvolvimento urbano. Dentre estes padrões, poder-se-ia citar a expansão periférica de baixa densidade, o adensamento excessivo das áreas centrais, a ociosidade de terrenos urbanizados no interior das cidades, a ocupação de áreas de risco pela população de baixa renda, etc. Neste caso, estamos utilizando a palavra "ordem" em sentido descritivo, ou seja, procurando entender os processos reais que governam a cidade como ela é. Distinção entre "Urbano" e "Urbanístico" Quando se pensa em uma ordem urbanística a ser defendida pelo Poder Judiciário, o que se procura é um conceito normativo de ordem. Aqui intervém o elemento valorativo, que é próprio de qualquer reflexão jurídica. É importante notar que a própria palavra "urbanística" já traz consigo uma conotação de intencionalidade, ao contrário da palavra "urbano", que tem conotação descritiva. "Urbano" é tudo o que ocorre no interior das cidades, independente de ser produto da ação consciente de algum agente ou não. Já "urbanístico" é apenas aquilo que diz respeito a uma ação consciente sobre a cidade. O congestionamento de tráfego é urbano, por ocorrer na cidade, mas não urbanístico, pois não foi criado voluntariamente por ninguém. O metrô, por outro lado, é urbanístico, por ter sido criado intencionalmente pelo poder público, e também é urbano, por estar na cidade. Ordem Urbana e Desordem Urbanística É importante notar que a distinção entre urbano e urbanístico não traz consigo um valor axiológico. É verdade que o urbanístico procura em geral resolver problemas urbanos, mas também é verdade que muitas vezes as atuações urbanísticas podem agravar os problemas urbanos, uma vez que toda ação provoca numerosos efeitos não intencionais, alguns dos quais imprevisíveis. De outro lado, nem tudo no urbano é problema. A ordem criada pela atuação espontânea dos agentes econômicos consegue em alguma medida atender às necessidades humanas. Se não fosse assim, não haveria migrações para as cidades e estas já teriam desaparecido da face da terra. Por mais insatisfatória que seja a ordem urbana, é preciso ter muito cuidado ao tentar substituí-la por uma ordem urbanística, pois os resultados nem sempre coincidem com as intenções. Uma intervenção urbanística pode não apenas fracassar quanto aos objetivos pretendidos, mas também romper a ordem urbana, criando, aí sim, um caos urbano prejudicial ao bem-estar dos habitantes da cidade. Um exemplo seria a remoção de favelas para conjuntos habitacionais na periferia, política praticada nas décadas de 1960 e 1970, que afastou os "beneficiários" de seus empregos e dos serviços públicos, criou bairros residenciais segregados, favoreceu a especulação imobiliária e expandiu excessivamente a mancha urbana. Massenzi, Life in the slum, 1996. Embora toda ação estatal no campo da política urbana seja urbanística, nem sempre ela estará produzindo uma ordem, em sentido normativo. O direito urbanístico não protege qualquer atuação urbanística, mas apenas aquelas que estão a serviço de uma ordem urbanística, ou seja, que estão efetivamente contribuindo para o objetivo supremo da política urbana, que é o bem-estar dos habitantes da cidade. Fundamento Constitucional da Ordem Urbanística A Constituição consagra em diversos dispositivos esta exigência de racionalidade e de coerência nas ações urbanísticas. Ao definir a competência urbanística municipal, ela deixa muito claro que o "controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano", se faz para "promover adequado ordenamento territorial" (art. 30, VIII). No mesmo sentido, a função social da propriedade urbana é cumprida pelo atendimento às "exigências fundamentais de ordenação da cidade" (art. 182, § 1o). Em ambos os casos, trata-se de produzir uma ordem de caráter normativo, não descritivo, à qual é atribuído um valor axiológico positivo. Diretrizes de Política Urbana Como distinguir uma situação em que há ordenação de outra em que esta não ocorre? Os critérios mais importantes foram positivados pelo Estatuto da Cidade no art. 2o, que tratou das diretrizes gerais da política urbana. Estas que eram apenas orientações extra-jurídicas aprendidas nas escolas de urbanismo, passam agora a integrar o ordenamento positivo, podendo sua violação ser contida pelo Poder Judiciário. As diretrizes não podem ser exigidas como regras absolutas, mas como objetivos que devem, em princípio, ser perseguidos. Muitas diretrizes são limitadas por outras diretrizes, ou seja, não é possível cumprir todas elas integralmente ao mesmo tempo. O poder público goza de ampla discricionariedade para fazer a ponderação dos objetivos da política urbana, buscando um compromisso entre as diversas diretrizes. O que não se admite é o sacrifício absoluto de uma diretriz ou uma não aplicação que não esteja fundamentada em outra diretriz. Dentro do âmbito definido pelas diretrizes, o poder público goza de "liberdade de planejamento", ou seja, há uma infinidade de soluções urbanísticas legítimas, cuja escolha é assunto eminentemente político. A violação injustificada de uma ou mais diretrizes já passa a ser um problema jurídico, reclamando a atuação do Poder Judiciário. O Estatuto da Cidade muitas vezes já inclui em um mesmo inciso duas diretrizes que precisam ser compatibilizadas. Exemplificando. O "direito a cidades sustentáveis" (art. 2o, I) envolve dois aspectos: o direito à cidade, ou seja, "à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer" e a exigência de que tudo isto seja sustentável, vale dizer, "para as presentes e futuras gerações". Não se pode, portanto, para garantir direitos sociais à população de baixa renda, comprometer áreas de proteção ambiental, tais como os mananciais de água potável da cidade. Daí porque se exige que a "regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas pela população de baixa renda" leve em consideração as "normas ambientais" (art. 2o, XIV). Dentre as diretrizes positivadas, merecem destaque aquelas que dizem respeito mais diretamente ao ordenamento territorial. A ordenação e controle do uso do solo tem por finalidade evitar a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes, o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana, a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização, a deterioração das áreas urbanizadas e a poluição e degradação ambiental (art. 2o, VI). Normas urbanísticas que permitam ou favoreçam a proximidade entre usos incompatíveis, o congestionamento da infra-estrutura, a especulação imobiliária, a deterioração dos centros ou que comprometam a sustentabilidade ambiental devem ser consideradas inconstitucionais, pois estarão violando os objetivos da política urbana de pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e do bem-estar de seus habitantes, nos termos em que foram detalhados pela legislação ordinária. Muitas vezes, entretanto, a legislação urbanística contribui para elitizar o mercado imobiliário, mediante exigências excessivas. Lotes mínimos grandes e coeficientes de aproveitamento baixos são a receita, por exemplo, para a produção de mansões. Se este padrão for generalizado para toda a zona urbana e de expansão urbana, a população de média e baixa renda ficará excluída do mercado, mesmo que tenha poder aquisitivo para adquirir lotes menores ou apartamentos. Daí a importância da diretriz de "simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos custos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais" (art. 2o, XV). Ao lado destas diretrizes propriamente urbanísticas, há outras que atuam indiretamente sobre o urbanismo e que contribuem para eliminar as causas da "desordem" urbanística. De fato, a principal razão para que o controle do uso do solo não esteja servindo aos objetivos recém citados deve-se ao fato de que os investimentos públicos e as normas urbanísticas afetam os cidadãos não apenas enquanto moradores, mas também enquanto proprietários. Se para os moradores convém sempre que as densidades sejam proporcionais à infra-estrutura, o mesmo não se pode dizer dos proprietários. Em muitas circunstâncias, estes têm interesse em manter ociosos seus terrenos ou em utilizá-los excessivamente, visando maximizar a utilização da infra-estrutura colocada pelo poder público. Neste sentido, o Estatuto consagra a diretriz da "justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização" (art. 2o, IX), formulada originalmente no direito urbanístico europeu. Seu significado é o de que os proprietários devem ser tratados com neutralidade pelo urbanismo, não ganhando nem perdendo economicamente com as ações urbanísticas do poder público. Em decorrência, tem-se a diretriz da "recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha resultado a valorização de imóveis urbanos" (art. 2o, XI), que é operacionalizada pelos instrumentos da contribuição de melhoria, da outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso e da operação urbana consorciada, assim como pelas regras sobre o valor da indenização de imóveis desapropriados (arts. 4o, VI, b 28, 29, 32 e 8o, § 2o, I). Também os ônus tem que ser justamente distribuídos. Daí porque se permite a transferência do direito de construir àqueles proprietários que tenham seu potencial construtivo reduzido para proteção do patrimônio histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural (art. 35, II). Na medida em que os proprietários souberem que a valorização ou desvalorização imobiliária causada por uma obra ou norma urbanística será sempre ressarcida, deixarão de atuar sobre o sistema político para obter benefícios. Com isto, tenderão a prevalecer os interesses dos moradores, ou seja dos consumidores da cidade, que são exatamente aqueles a serem refletidos por uma legítima ordem urbanística. (...)
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
3082
Idioma
pt_BR