Notícia n. 3074 - Boletim Eletrônico IRIB / Novembro de 2001 / Nº 397 - 08/11/2001
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
397
Date
2001Período
Novembro
Description
Palestra 2 - 2º Painel SOLO CRIADO Eros Roberto Grau - Professor Titular da Faculdade de Direito da USP - (Trecho do trabalho escrito.) (...) 2.1 POSIÇÃO DA QUESTÃO 1. No segundo semestre de 1976, elaborei, por solicitação da Fundação CEPAM - atual CEPAM - Fundação Prefeito Faria Lima - exposição sobre a noção de solo criado, tendo em vista o encaminhamento de respostas às seguintes questões: (a) É constitucional a fixação, pelo Município, de um coeficiente único de aproveitamento do solo? (b) É constitucional a instituição da chamada transferibilidade do direito de criar solo? Destinou-se o texto a servir como documento básico para a discussão das questões em Seminário promovido pela CEPAM, na cidade do Embu, nos dias 11/12.12.76. Parece-me oportuno, algum tempo passado desde o Seminário do Embu, retornar ao tema. Alguns trabalhos, referidos a ele, foram desde então produzidos entre nós. Não é minha intenção a de, a partir da consideração de tais contribuições, elaborar um novo texto sobre o assunto. Antes, pelo contrário, referindo-as apenas quando isso me pareça necessário, move-me o desejo de, caminhando sobre as linhas de minha exposição anterior, desenvolvê-las, a elas aportando distintas colocações, atinentes à questão da função social da propriedade. Cuido pois, a seguir, em três momentos diversos, de colocar a noção de solo criado, de alinhar considerações a propósito da função social da propriedade e, finalmente, de retomar, conclusivamente, o instituto do solo criado. 2.2 A NOÇÃO DE SOLO CRIADO 2. Controle do uso do solo urbano - atividade-meio - é exercido através de uma série de instrumentos, entre os quais se destacam, com especial relevo, as restrições ao exercício da atividade de construção sobre imóveis, consubstanciadas nas chamadas legislações de zoneamento. Institutos fundamentais do zoneamento são o coeficiente de aproveitamento e a taxa de ocupação. O coeficiente de aproveitamento expressa a relação entre a área construída (isto é, a soma das áreas dos pisos utilizáveis, cobertos ou não, de todos os pavimentos de uma edificação) e a área total do terreno em que a edificação se situa. A taxa de ocupação, por outro lado, expressa a relação entre a área ocupada (isto é, a projeção em plano horizontal da área construída acima do nível do solo) e a área total do terreno. 3. A definição, pelo Poder Público, de diversos e distintos coeficientes de aproveitamento, na legislação de zoneamento, permite a ocorrência, a nível individual, de inúmeras situações de injustiça: a definição de um ou outro coeficiente de aproveitamento poderá alterar substancialmente o valor dos terrenos. Daí o volume extremamente significativo de pressões que se exerce sobre o Poder Público, no sentido de pretender a alteração da legislação de zoneamento, sempre para o fim de que sejam ampliados os coeficientes de aproveitamento. É certo, por outro lado, que a ampliação dos coeficientes de aproveitamento implica sistematicamente o acréscimo da demanda de equipamentos por parte da comunidade que vai ocupar os locais relativamente aos quais ocorreu tal ampliação: meios de circulação, equipamentos de água, esgoto, transportes públicos, áreas de lazer, áreas de estacionamento etc. Tendo-se em vista fundamentalmente - mas não exclusivamente - tais distorções, desenvolveu-se a idéia da instituição da noção de solo criado, que implica a adoção de um coeficiente único de aproveitamento para todo o território nacional ou para toda a região. 4. A noção de solo criado desenvolveu-se inicialmente a partir da observação da possibilidade de criação artificial de área horizontal, mediante a sua construção sobre ou sob o solo natural. Compreendia-se assim o solo criado como o resultado da criação de áreas adicionais utilizáveis, não apoiadas diretamente sobre o solo natural. Não se confunde, no entanto, a noção - mesmo quando nestes termos entendida - com a de ocupação do espaço aéreo, visto que pode haver ocupação de espaço aéreo sem criação de solo seria o caso de construção de uma torre de grande altura, sem pavimentos intermediários, ou de nave de uma catedral gótica também de grande altura, mas sem nenhum plano utilizado no intermediário. Por outro lado, pode haver criação de solo sem ocupação do espaço aéreo: seria o caso das construções no subsolo, que ocupam um espaço subterrâneo. Desenvolvidos, no entanto, novos estudos urbanísticos a propósito da idéia, passou-se a entender como solo criado o resultado de construção praticada em volume superior ao permitido nos limites do coeficiente único de aproveitamento. Tudo quanto se construa, pois, além do quantum convencionado em tal coeficiente, inclusive no andar térreo, é entendido como solo criado. Importante notar que não se confunde a idéia de coeficiente único com a de índices de aproveitamento, tomados pela legislação de zoneamento municipal. Observe-se que, adotado o coeficiente único para todo um município, ainda assim a legislação de zoneamento poderá, tendo em vista razões de urbanismo, fixar índices de aproveitamento, em áreas diversas desse mesmo território, maiores e menores do que aquele coeficiente. 5. A concepção da noção de solo criado, de toda sorte, está naturalmente atrelada à fixação de um coeficiente de aproveitamento único para todos os terrenos em um município, região ou país. Costumeiramente, nos estudos de natureza urbanística a propósito desenvolvidos, tem-se admitido que tal coeficiente deveria ser igual a um, considerando-se então como solo criado tão-somente a área construída que ultrapassasse, em metros quadrados, o valor equivalente ao da área do terreno. Adotada a noção e, subseqüentemente, definido o coeficiente de aproveitamento único, o direito de construir seria limitado a determinada quantidade, proporcional à área do terreno. 6. Assim, é conseqüente a essa verificação a afirmação de que, para que alguém pudesse construir a mais do que o permitido pelo coeficiente único, teria de adquirir direito de construir inerente a outro terreno, seja (a) de propriedade de particulares, seja (b) de propriedade do setor público. Quando se tratasse de aquisições ao Poder Público, poderiam ser pagas em dinheiro ou mediante permuta por áreas de terrenos destinadas à preservação de áreas verdes, do patrimônio histórico e artístico, à criação de áreas de lazer etc. 7. A adoção do instituto permitiria corrigir uma série de distorções que afetam, especialmente, a oportunidade de apropriação e uso de solo urbano, a distribuição dos benefícios gerados pela ação da comunidade urbana, especialmente pelo Poder Público, a distribuição dos encargos gerados pelo uso do solo e a distribuição de efeitos positivos ou negativos do zoneamento sobre a valorização dos imóveis. 8. Definida a noção de solo criado, tem-se como conseqüente dela a de transferência do direito de construir. Essa transferência vem sendo praticada, já há algum tempo, nos Estados Unidos, especialmente para o fim de instrumentar a conservação do patrimônio histórico cultural. A transferibilidade do direito de construir implica seja permitida a transferência desses direitos de um lote a um segundo lote, de acordo com certas regras. Assim, para construir em determinado terreno, além do coeficiente de aproveitamento fixado, poderá o interessado adquirir direitos, parciais ou totais, de terceiros, sendo exato que, neste último caso, não poderá mais esse terceiro, no seu terreno, nada construir. Note-se, todavia, que a adoção do instituto da transferência do direito de construir apenas é viável quando não exista a possibilidade da mudança da legislação que fixa o coeficiente de aproveitamento. Se houver essa possibilidade, provavelmente, ninguém se interessará em adquirir direitos de criar solo a outros proprietários de imóvel. Por esta razão é que, sistematicamente, a idéia da transferência do direito de construir vem sendo considerada como atrelada à noção de solo criado que, por sua vez, implica a adoção de um coeficiente único, inalterável. 9. A conjugação dos dois institutos implicaria se definisse: (a) que o direito de construir está limitado a um coeficiente único de aproveitamento (igual a 1) (b) que, para certas áreas ou zonas da cidade, é possível e conveniente, do ponto de vista social, a construção além do coeficiente de aproveitamento único para que, no entanto, isto seja permitido nessas zonas, será exigida do construtor a aquisição de direitos de construir suficientes para tal. Notas O texto resultante foi publicado em coletânea editada pela Fundação CEPAM, O Solo Criado / Carta do Embu, São Paulo, Fundação Prefeito Faria Lima, 1977, e na Revista dos Tribunais, vol. 504. 2 Os participantes do Seminário produziram o seguinte documento: "CARTA DO EMBU "Considerando que, no território de uma cidade, certos locais são mais favoráveis à implantação de diferentes tipos de atividades urbanas "considerando que a competição por esses locais tende a elevar o preço dos terrenos e a aumentar a densidade das áreas construídas "considerando que a moderna tecnologia da construção civil permite intensificar a utilização dos terrenos, multiplicando o número de pavimentos pela ocupação do espaço aéreo ou do subsolo "considerando que esta intensificação sobrecarrega toda a infra-estrutura urbana, a saber, a capacidade das vias, das redes de água, esgoto e energia elétrica, bem assim a dos equipamentos sociais, tais como, escolas, áreas verdes etc. "considerando que essa tecnologia vem ao encontro dos desejos de multiplicar a utilização dos locais de maior demanda, e, por assim dizer, permite a criação de solo novo, ou seja, de áreas adicionais utilizáveis, não apoiadas diretamente sobre o solo natural "considerando que a legislação de uso do solo procura limitar este adensamento, diferenciadamente para cada zona, no interesse da comunidade "considerando que um dos efeitos colaterais dessa legislação é o de valorizar diferentemente os imóveis, em conseqüência de sua capacidade legal de comportar área edificada, gerando situações de injustiça "considerando que o direito de propriedade, assegurado na Constituição, é condicionado pelo princípio da função social da propriedade, não devendo, assim, exceder determinada extensão de uso e disposição, cujo volume é definido segundo a relevância do interesse social: "Admite-se que, assim como o loteador é obrigado a entregar ao Poder Público áreas destinadas ao sistema viário, equipamentos públicos e lazer, igualmente, o criador de solo deverá oferecer à coletividade as compensações necessárias ao reequilíbrio urbano reclamado pela criação do solo adicional, e "Conclui-se que: "1. É constitucional a fixação, pelo Município, de um coeficiente único de edificação para todos os terrenos urbanos. "1.1 A fixação desse coeficiente não interfere com a competência municipal para estabelecer índices diversos de utilização dos terrenos, tal como já se faz, mediante legislação de zoneamento. "1.2 Toda edificação acima do coeficiente único é considerada solo criado, quer envolva ocupação de espaço aéreo, quer a de subsolo. "2. É constitucional exigir na forma da lei municipal, como condição de criação de solo, que o interessado entregue ao Poder Público áreas proporcionais ao solo criado quando impossível a oferta destas áreas, por inexistentes ou por não atenderem às condições legais para tanto requeridas, é admissível sua substituição pelo equivalente econômico. "2.1 0 proprietário de imóvel sujeito a limitações administrativas, que impeçam a plena utilização do coeficiente único de edificação, poderá alienar a parcela não utilizável do direito de construir. "2.2 No caso de imóvel tombado, o proprietário poderá alienar o direito de construir correspondente à área edificada ou ao coeficiente único de edificação. 3 A injustiça social aqui apontada se manifesta a nível individual, mesmo quando tais definições são urbanisticamente exatas e justas, do ponto de vista social. 4 Cf. Antonio Cláudio Moreira Lima e Moreira, Clementina de Ambrosis, Dalmo do Valle Nogueira e Domingos Theodoro de Azevedo Netto, "O solo criado", in O Solo Criado / Carta do Embu, 24. 5 Idem, ibidem. 6 V. propósito, Maria de Lourdes Cesarino Costa, "O Solo criado como instrumento de eqüidade", in O Solo Criado / Carta do Embu, p. 155 e ss. 7 Assim ocorreu em Chicago, tendo também o Departamento do Interior do Governo Norte-Americano desenvolvido um programa de preservação de 12 prédios históricos, da Escola de Arquitetura de Chicago, mediante a criação de um Parque Nacional de Cultura, do qual os prédios fazem parte. Lançou-se mão, para tanto, da transferibilidade do direito de construir e criou-se um banco administrativo de atividade. No momento pretende-se, em São Paulo a partir de anteprojeto de lei municipal elaborado sob a coordenação de Modesto Carvalhosa e Benedito Lima Toledo - lançar mão do mesmo mecanismo, para efeito de promoção da preservação do patrimônio cultural, inicialmente no Município da Capital, posteriormente nos demais do Estado de São Paulo tenho participado do programa como consultor do Secretário da Cultura do Estado de São Paulo. (...)
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
3074
Idioma
pt_BR