Notícia n. 3072 - Boletim Eletrônico IRIB / Novembro de 2001 / Nº 397 - 08/11/2001
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
397
Date
2001Período
Novembro
Description
Palestra 2 - 1º painel ASPECTOS JURÍDICOS DO PLANO DIRETOR Adilson Abreu Dallari - Professor de Direito Urbanístico da PUC/SP - (Trecho do trabalho escrito) I - INTRODUÇÃO (...) II - O ESTATUTO DA CIDADE A promulgação da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2.001, denominada oficialmente como Estatuto da Cidade, é um marco extremamente relevante para o desenvolvimento dos estudos de direito urbanístico, na medida em que representa o ponto de partida para uma futura sistematização normativa dessa matéria. Até agora, as questões de Direito Urbanístico, as questões jurídicas ligadas ao uso conveniente dos espaços habitáveis, eram tratadas como um capítulo, um segmento do Direito Administrativo. O urbanismo era visto apenas como um setor de atuação da administração pública, sem uma identidade, sem um conjunto de princípios e regras próprias. Até agora, os instrumentos legais utilizados com o objetivo de ordenar convenientemente os espaços habitáveis correspondiam a uma parte do Direito Administrativo consistente no exercício do poder de polícia da administração pública em relação à propriedade urbana. Dada a estrutura federativa do Estado brasileiro, dada a autonomia administrativa dos entes que integram a federação, o que existe em matéria de instrumentos de atuação urbanística da Administração Pública figura apenas em uma legislação esparsa, e não em um conjunto orgânico, articulado. Temos apenas legislações isoladas, pontuais, disciplinando assuntos específicos. Não existe no Brasil um código de urbanismo como, por exemplo, o que existe na França, disciplinando a atuação, nessa matéria, do governo central, das regiões e províncias e das autoridades locais, estabelecendo toda uma cadeia de planos urbanísticos, fixando os processos de formulação dos diversos planos e cuidando das licenças urbanísticas. E não há possibilidade de existir entre nós um código nacional de urbanismo por causa da estrutura federativa do Brasil. A França é um país unitário, o que significa que o governo central, nacional, pode cuidar dos assuntos pertinentes ao urbanismo em todo o seu território. Lá, existe uma legislação articulada, um código completo de atuação governamental na área do urbanismo. No Brasil, o Estado brasileiro tem uma estrutura federativa. Por força disso cada pessoa jurídica de capacidade política - a União, os Estados e Municípios - legisla para si na matéria administrativa, inclusive em relação à organização dos espaços habitáveis, conforme as competências recebidas diretamente da Constituição Federal. Por opção do legislador constituinte, o papel preponderante, em matéria de urbanismo, foi dado ao Município, provavelmente porque os assuntos urbanísticos afetam mais acentuadamente as populações locais. Portanto, a legislação de caráter administrativo versando urbanismo é basicamente ou principalmente uma legislação municipal. Neste ponto, é preciso fazer um esclarecimento a respeito da convivência da lei municipal com as outras leis, editadas pelo Estado e pela União. É certo que o Brasil apresenta diferentes ordens jurídicas devido ao sistema federativo. Existem, convivendo, leis municipais, estaduais e federais, cada uma cuidando da atuação da sua respectiva máquina administrativa. Todavia é absolutamente necessário atentar para o fato de que o sistema federativo comporta, necessariamente, uma quarta espécie de lei, para a qual, nem a doutrina, nem a jurisprudência, dispensam a devida atenção, qual seja, a lei nacional. O aparelho legislativo da União produz duas espécies de leis: as federais, que são dirigidas ao próprio aparelho administrativo da União, como, por exemplo, o estatuto dos funcionários públicos da União e as leis nacionais, como, por exemplo o Código Tributário Nacional, que deve ser acatada por todos os jurisdicionados do Estado brasileiro. A União, os Estados e os Municípios são obrigados a cumprir esse código, que também deve ser observado por todos os cidadãos e por todas as pessoas jurídicas existentes no território nacional. Este esclarecimento foi feito para que se possa perceber porque é muito significativo, do ponto de vista jurídico, que o Estatuto da Cidade, dispondo sobre normas gerais de Direito Urbanístico, tenha sido editado pela União na competência que lhe dá o artigo 24, inciso I da Constituição Federal, para editar normas gerais de Direito Urbanístico. A inferência imediata que se deve retirar disso é que o Estatuto da Cidade não é uma lei federal, no sentido de ser uma lei aplicável apenas ao aparelho administrativo da União: o Estatuto da Cidade é uma lei nacional, que estabelece normas gerais de observância obrigatória por todos os jurisdicionados do Estado brasileiro. Seja permitido registrar, como exemplo, um paralelo: cada Município tem a sua legislação tributária e cobra seus tributos cada Estado faz a mesma coisa e a União também cobra os tributos criados por leis federais. Mas todas essas legislações devem observar as normas gerais contidas no Código Tributário Nacional. Essa é a grande importância do Estatuto da Cidade: estabelecer normas gerais de Direito Urbanístico de observância obrigatória por todas as outras ordens legislativas existentes no Brasil. III - A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE Não é propósito deste estudo abordar todo o Estatuto da Cidade, que é riquíssimo e completo seria impossível abordá-lo em toda a sua amplitude num simples artigo. O que aqui se pretende é destacar a importância do plano diretor, numa abordagem precipuamente jurídica. Como ponto de partida, cabe lembrar que a Constituição Federal, ao cuidar dos direitos individuais, afirma o direito de propriedade, consagra o direito à propriedade privada, mas, ao mesmo tempo, diz que "a propriedade cumprirá sua função social". Portanto, a nossa propriedade não é uma propriedade qualquer, sem pautas ou condicionamentos ao contrário, ela deve cumprir uma função social. Mas quando uma propriedade cumpre ou não sua função social? Aí é que entra a importância estratégica do plano diretor, pois o artigo 182, § 2º, diz, textualmente, que "a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor". Ou seja, quem vai dizer se a propriedade está ou não cumprindo a sua função social é o plano diretor. Essa exigência de que a propriedade cumpra uma função social não é nova já constava da Carta Constitucional de 1969. Sobre essa exigência e destacando exatamente a importância concreta dessa formulação constitucional já tivemos a oportunidade de dizer: "De acordo com a formulação constitucional, o sistema jurídico brasileiro somente consagra, comporta e ampara o direito de propriedade enquanto e na medida em que ele estiver cumprindo uma função social. Essa concepção do direito de propriedade abre imensas possibilidades para a administração pública no tocante a uma atuação eficiente em matéria de disciplina do uso e ocupação do solo urbano". (Adilson Abreu Dallari, "Desapropriação para fins urbanísticos", Forense, 1981, p. 37) Não obstante as potencialidades abertas ao legislador ordinário pelo texto constitucional, o que se observou, na prática, é que o princípio da função social da propriedade produziu pouquíssimos frutos, talvez exatamente pela falta de um texto normativo que dissesse o que deveria ser entendido como sendo de interesse social, como correspondente ao cumprimento da função social da propriedade. Novamente, para deixar esse assunto mais claro, é preciso recorrer a um exemplo paralelo: o que é interesse público? Será que o interesse público é qualquer coisa que um agente público entender como tal? será que interesse público é um conceito inteiramente vazio e sem conteúdo? Não é. À luz do sistema jurídico brasileiro, é a lei qualifica um interesse como público, é a lei quem diz o que é de interesse público. O administrador deve gerir a coisa pública no sentido da realização daquilo que a lei qualificou como de interesse público - e não daquilo que ele, administrador, possa entender como sendo de interesse público. E o mesmo vale para a propriedade urbana. Não fica a critério de cada agente público achar que ela cumpre ou não sua função social. Hoje, após o advento da Lei nº 10.257, de 10/07/01, existe um parâmetro para definição da função social que é exatamente o plano diretor. Evidentemente, isso já estava contido no texto constitucional, expressamente. Mas, lamentavelmente, é preciso registrar que, no Brasil, ainda é largamente majoritária (especialmente na jurisprudência) a corrente que entende ser necessário que o legislador ordinário "discipline" o princípio constitucional para que este tenha eficácia. Conforme observação feita por um dos mais brilhantes integrantes do Tribunal de Justiça de São Paulo, o Desembargador José Osório de Azevedo Júnior (que efetivamente aplica diretamente os princípios constitucionais em seus ilustrados votos), para alguns juizes a invocação, pela parte, de algum princípio constitucional é tomada como indicador seguro de que ela não tem o direito que postula, pois, se tivesse, teria indicado a lei que lhe daria fundamento. Nessa perspectiva, é importante destacar que o Estatuto da Cidade veio, de certa forma, dar eficácia ao princípio constitucional, pois embora a função do plano diretor já estivesse prevista pela Constituição, a carência de uma lei federal dispondo expressamente sobre isso impedia que os Municípios dessem concreção ao princípio da função social da propriedade. O preceito constitucional consagrador da função social da propriedade já existia antes mesmo da promulgação da Constituição Federal de 1988, que apenas reafirmou com maior ênfase esse princípio, mas era consideravelmente difícil implementá-lo. Agora, por força do Estatuto da Cidade, ficou mais viável a edição de legislação municipal destinada a dar eficácia concreta ao princípio da função social da propriedade. O direito de propriedade hoje, no Brasil, é marcado pela afirmação de uma série de prerrogativas do proprietário, do detentor exclusivo de um determinado bem, que pode dispor, usar e alienar esse bem. Pela aplicação concreta do princípio da função social da propriedade será possível estabelecer os deveres do detentor da riqueza, daquele a quem a ordem jurídica reconhece o direito de ter uma propriedade. Agora esse alguém recebe da mesma ordem jurídica o dever de usar a sua propriedade imobiliária urbana em benefício da coletividade. Isso, a rigor, não é uma novidade no campo do Direito: basta citar a legislação social, a legislação trabalhista. Do que cuida a legislação trabalhista? Do dever social do detentor do capital, do investidor, do empresário, em tomar uma série de atitudes em benefício do operário, do trabalhador, de quem trabalha para a empresa, para assim cumprir um papel social. Ou seja: o princípio da função social da propriedade já é aplicado com relação à propriedade de bens de capital, sem que isso cause qualquer espanto. Hoje temos condições, a partir do Estatuto da Cidade, de estabelecer obrigações para o proprietário do solo urbano passamos a ter instrumentos para evitar a detenção especulativa do solo. IV - NATUREZA E CONTEÚDO DO PLANO DIRETOR Assim como o princípio da função social não é novidade, também o pano diretor, ou, melhor dizendo a obrigatoriedade de elaboração de planos diretores também já esteve presente no direito positivo brasileiro, especialmente nas antigas leis orgânicas dos municípios, que eram, como regra geral, antes da promulgação da Constituição Federal vigente, elaboradas pelos Estados. Durante muito tempo o plano diretor foi exaltado como instrumento destinado a dar maior racionalidade, economicidade e eficiência à administração local no tocante ao uso do solo urbano. Diversas dessas leis orgânicas municipais se referiam ao Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado - PDDI, como uma verdadeira panacéia, abrangendo todos os aspectos da administração municipal, indo, quanto ao conteúdo, muito além da simples ordenação física do espaço urbano, mas com escassa repercussão jurídica, no tocante ao direito de propriedade. Após o advento da Constituição Federal de 1988 essa concepção do Plano Diretor mudou radicalmente, diminuindo em abrangência (quanto aos assuntos ou setores que devem constar de seu conteúdo) mas ganhando enorme significado jurídico, trazendo substancial alteração ao conceito de propriedade imobiliária urbana. Nelson Saule Júnior, em seu excelente estudo sobre as "Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro. Ordenamento constitucional da política urbana. Aplicação e eficácia do plano diretor" (Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997, p. 42) destaca algumas dessas alterações: "Sobre a nova configuração do plano diretor como instrumento de política urbana nos termos do texto constitucional podemos concluir que: 1) O plano diretor ao ser instituído por norma constitucional configura natureza distinta dos antigos planos diretores de desenvolvimento integrado, em razão de: a) ser o instrumento básico da política urbana municipal pelo qual se efetiva o planejamento urbanístico local, b) ser requisito obrigatório para o Município promover ações e medidas para a propriedade urbana atender sua função social c) ter como requisito para a sua instituição e implementação a participação popular, que se tornou preceito obrigatório dos processos e instrumentos de planejamento 2) O plano diretor, em decorrência da sua natureza de ser o instrumento básico da política urbana municipal, tem como pressupostos para a sua eficácia jurídica o planejamento, democrático e participativo com base no princípio da participação popular, como meio de garantia a apropriação e o reconhecimento institucional da realidade social e cultural local para a constituição de suas regras, procedimentos e instrumentos destinados a tornar efetivo o direito à cidade 3) O fundamento do plano diretor como parte integrante do processo de formulação e implementação da política urbana ser destinado a criar mecanismos e instrumentos jurídicos que permitam ações e atividades no Município para tornar concreto e direito à cidade, de modo a ter eficácia jurídica, deve ser extraído do conjunto de normas do sistema constitucional". O plano diretor não é mais panacéia não se destina a encaminhar a solução de todos os problemas, nas áreas de saúde, educação, assistência social etc. Está centrado na organização conveniente dos espaços habitáveis, é o instrumento básico da política urbana municipal, deve ser elaborado de maneira participativa e deve servir como instrumento de realização da função social da propriedade. O plano diretor, elaborado nos termos da Constituição Federal vigente, tem força de lei, dado que deve ser necessariamente aprovado por lei. Não é mais apenas um instrumento técnico de trabalho, mas sim, também, um instrumento jurídico de atuação do governo local. Quem ressalta com clareza e precisão a natureza jurídica do plano diretor é o consagrado José Afonso da Silva: "Os planos urbanísticos são aprovados por lei. É uma exigência do princípio da legalidade no sistema brasileiro, que não admite que se crie obrigação e se imponha constrangimento senão em virtude de lei (CF, art. 5º, II). Quanto ao PD, é a própria Constituição Federal que exige sua aprovação pela Câmara Municipal, e as leis orgânicas dos Municípios, em geral, estatuem que ele deve ser aprovado pelo voto qualificado de dois terços dos membros daquela, o que lhe atribui certa rigidez. Assim, os elementos do plano ficam fazendo parte integrante dessa lei, transformando-se, pois, em normas jurídicas". (José Afonso da Silva, "Direito Urbanístico Brasileiro", 3ª ed., Malheiros, 2.000, p. 137.) Na nova disciplina constitucional, o plano diretor deve cuidar precipuamente da organização dos espaços físicos do Município, mas isso não significa que ele deva ser elaborado apenas como uma exigência de ordem estética ou funcional. O plano diretor, ao organizar os espaços habitáveis, em toda a área do município (urbana e rural) deve ter, sim, uma preocupação social, de justiça social, de realização do mandamento constitucional (art. 3º, III) no sentido da erradicação da pobreza e da marginalidade e redução das desigualdades sociais e regionais. Joaquim Castro Aguiar mostra que isso não significa um desvio no tocante aos propósitos urbanísticos ao contrário, está necessariamente implícito na atuação urbanística: "O plano diretor insere-se, fundamentalmente, no urbanismo. E como este considera a sociedade como um todo, emoldurando-se num quadro social e econômico, não se pode pretender que cuide apenas dos aspectos físicos de uma área, como se fosse possível tratar o espaço à margem da sociedade, sem interferência na estrutura social. Não tem o plano diretor o objetivo estreito de cuidar, isoladamente, de obras, como se fosse instrumento de atuação da secretaria de obras. O plano diretor há de tratar o espaço como manifestação social. Não é um plano a nível de projetos de edificação, de habitação, de transporte, de zoneamento, sem assumir sua inerente e inafastável função social. Aliás, o urbanismo não é uma questão instrumental, técnica, mas uma questão social, e os planos urbanísticos não devem afastar-se dessa linha. Enquanto os planos não contribuírem para a melhoria da qualidade de vida da população, constituirão peças técnicas sem préstimo algum. O plano diretor envolve aspectos físicos, econômicos, sociais e institucionais, entrelaçados entre si, não sendo um fim em si mesmo e tendo por objetivo a melhoria da qualidade de vida da população. No seu aspecto físico, o plano conterá normas e diretrizes sobre o parcelamento do solo, seu uso e ocupação, revitalização e preservação. No aspecto econômico, incentivará a indústria, o comércio, a implantação de serviços, aumentando a oferta de empregos e melhorando as condições econômicas da população. No aspecto social, enfrentará desafios referentes às precárias habitações da pobreza e sua moradia, oferecerá serviços de educação, saneamento básico, saúde, esporte e lazer. No aspecto institucional (administrativo), estará atento aos meios necessários à sua implementação, execução e revisão, inclusive quanto à capacitação de funcionários para esse tipo de tarefa". (Joaquim Castro Aguiar, "Direito da cidade", Renovar, 1.996, p. 45.) Não resta dúvida, portanto, de que a previsão constitucional de elaboração do plano diretor e a disciplina dessa atividade nas normas gerais de direito urbanístico, editadas pela União, sob a designação de Estatuto da Cidade, podem dar acentuado efeito aos esforços dos governos locais para a melhoria da qualidade de vida das respectivas populações. (...)
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
3072
Idioma
pt_BR