Notícia n. 3071 - Boletim Eletrônico IRIB / Novembro de 2001 / Nº 397 - 08/11/2001
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
397
Date
2001Período
Novembro
Description
Palestra 1 - 1º painel ESTATUTO DA CIDADE - INSTRUMENTO PARA AS CIDADES QUE SONHAM CRESCER COM JUSTIÇA E BELEZA Raquel Rolnik - Urbanista e Professora da PUC/Campinas-SP - (Trechos do trabalho escrito e da palestra) Depois de 11 anos de negociações e adiamentos, o Congresso Federal aprovou o Estatuto da Cidade, lei que regulamenta o capítulo de política urbana (artigos 182 e 183) da Constituição Federal de 1988. Encarregada pela constituição de definir o que significa cumprir a função social da cidade e da propriedade urbana, a nova lei delega esta tarefa para os municípios, oferecendo para as cidades um conjunto inovador de instrumentos de intervenção sobre seus territórios, além de uma nova concepção de planejamento e gestão urbanos. As inovações contidas no Estatuto situam-se em três campos: um conjunto de novos instrumentos de natureza urbanística voltados para induzir - mais do que normatizar - as formas de uso ocupação do solo uma nova estratégia de gestão que incorpora a idéia de participação direta do cidadão em processos decisórios sobre o destino da cidade e a ampliação das possibilidades de regularização das posses urbanas, até hoje situadas na ambígua fronteira entre o legal e o ilegal. No primeiro conjunto - dos novos instrumentos urbanísticos - a evidente interação entre regulação urbana e a lógica de formação de preços no mercado imobiliário é enfrentada através de dispositivos que procuram coibir a retenção especulativa de terrenos e de instrumentos que consagram a separação entre o direito de propriedade e potencial construtivo dos terrenos atribuído pela legislação urbana. A partir de agora, áreas vazias ou subutilizadas situadas em áreas dotadas de infra-estrutura estão sujeitas ao pagamento de IPTU progressivo no tempo e à edificação e parcelamento compulsórios, de acordo com a destinação prevista para a região pelo Plano Diretor. A adoção deste instrumento pode representar uma luz no fim do túnel para as cidades que em vão tentam enfrentar a expansão horizontal ilimitada, avançando vorazmente sobre áreas frágeis ou de preservação ambiental, que caracterizam nosso urbanismo selvagem e de alto risco. Que cidade média ou grande de nosso país não tem uma ocupação precocemente estendida, levando os governos a uma necessidade absurda de investimentos em ampliação de redes de infra-estrutura - pavimentação, saneamento, iluminação, transporte - e, principalmente, condenando partes consideráveis da população a viver em situação de permanente precariedade? Que cidade média ou grande de nosso país não é obrigada a transportar cotidianamente a maior parte da população para os locais aonde se concentram os empregos e as oportunidades de consumo e de desenvolvimento humano, desperdiçando inutilmente energia e tempo? Ainda no campo dos instrumentos urbanísticos, o Estatuto consagra a idéia do Solo Criado, através da institucionalização do Direito de Superfície e da Outorga Onerosa do Direito de Construir. A idéia é muito simples: se as potencialidades dos diferentes terrenos urbanos devem ser distintas em função da política urbana (áreas que em função da infra-estrutura instalada devem ser adensadas, áreas que não podem ser intensamente ocupadas por apresentarem alto potencial de risco - de desabamento ou alagamento, por exemplo) , não é justo que os proprietários sejam penalizados - ou beneficiados - individualmente por esta condição, que independeu totalmente de sua ação sobre o terreno. Desta forma separa-se um direito básico, que todos lotes urbanos devem possuir, dos potenciais definidos pela política urbana. Vozes críticas em relação a estes novos dispositivos tentaram , durante o longo o processo de tramitação , caracterizar estes instrumentos como "mais um imposto" ou "confisco de um direito privado". Este discurso procura inverter o que realmente ocorre em nossa cidades - a apropriação privada (e na mão de poucos) da valorização imobiliária decorrente dos investimentos públicos e coletivos, pagos pelos impostos de todos... Além de configurar um confisco, este mecanismo perverso é da tal forma alimentado pela desigualdade de condições urbanas que caracteriza as nossas cidades, que acaba sendo responsável também por instaurar um urbanismo condenado a um modelo excludente: as poucas áreas que concentram as qualidades de uma cidade bem desenhada e equipada são destinadas para os segmentos de maior renda. Para os mais pobres, em nosso país as maiorias, resta a ocupação das franjas, das áreas longínquas ou pouco aptas para urbanizar como as encostas de morros, as beiras de córrego, os mangues. Desta forma uma poderosa máquina de exclusão territorial é posta em operação, monstro que transforma urbanismo em produto imobiliário, negando à maior parte dos cidadãos o direito a um grau básico de urbanidade. Mas não reside apenas na regulamentação deste conjunto de instrumentos a importância do Estatuto da Cidade. Na verdade, pela primeira vez em nossa história, temos uma regulação federal para a política urbana que se pratica no país, definindo uma concepção de intervenção no território que se afasta da ficção tecnocrática dos velhos Planos Diretores de Desenvolvimento Integrado, que tudo prometiam (e nenhum instrumento possuíam para induzir a implementação do modelo idealizado proposto!). (...) É fundamental ampliar a participação direta do cidadão nos processos decisórios que vão afetar o futuro da sociedade. É muito importante ressaltarmos duas questões. Primeiro, não é por acaso que a maior parte dos instrumentos que estão contidos no estatuto estão vinculados ao plano diretor da cidade. Longe de ser uma estratégia protelatória, ao vincular a aplicação dos instrumentos ao plano diretor, o estatuto estabelece claramente duas questões: por um lado confere ao plano diretor uma nova concepção, uma nova forma de se colocar perante a gestão urbana e, por outro lado, reforça a idéia de que os instrumentos presentes no estatuto são instrumentos para atingir determinados fins, que devem ser estabelecidos nas situações concretas das cidades. Por isso esse plano diretor é importante. Ele vai estabelecer os objetivos e a estratégia para atingi-los. Vai mobilizar os instrumentos do Estatuto da Cidade na direção da implantação desses objetivos e aí o conjunto de instrumentos. Sobretudo os instrumentos de natureza urbanística são instrumentos de indução da ação dos agentes que produzem e constróem as cidades, no sentido da construção da cidade desejada que queremos estabelecida no plano diretor. Temos uma experiência de implementação de planejamento extremamente frustrante e é sobre ela que é necessário refletir. Temos cidades que têm plano diretor há 20 anos todas elas são marcadas pelo desequilíbrio social. Nenhuma conseguiu garantir um patamar básico de urbanidade e de equilíbrio, apesar dos planos definirem e determinarem claramente uma cidade equilibrada, desenhada nos seus mapas e papéis. A grande discussão é como esses planos intervêm na produção concreta da cidade. Os instrumentos de que dispomos até agora, toda concepção e metodologia utilizada na nossa tradição tecnocrática de plano diretor, têm sido de estabelecer o modelo ideal de cidade, defini-lo no plano, a partir daí construir uma norma e a dinâmica real da cidade como se não estivéssemos em cidades marcadas pela desigualdade de renda, de acesso aos bens, benefícios etc. O resultado disso tem sido a produção de uma dualidade. Existe um pedaço muito pequeno da cidade com uma condição urbana básica onde estão concentrados os empregos, a renda, as oportunidades culturais, econômicas, de saúde etc. e um segundo espaço urbano, normalmente maior, distante do primeiro e bastante precário. O plano diretor tem que ser absolutamente claro nos seus objetivos. E a cada objetivo do plano deve corresponder um instrumento de implementação: instrumento de redistribuição das oportunidades urbanas, de manejo do uso e ocupação de solo, de democratização do mercado, de garantia das condições básicas de urbanidade etc. (...)
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
3071
Idioma
pt_BR