Notícia n. 2703 - Boletim Eletrônico IRIB / Julho de 2001 / Nº 335 - 07/07/2001
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
335
Date
2001Período
Julho
Description
Mensagens na garrafa Sérgio Jacomino - Lançadas ao mar, as mensagens encapsuladas neste boletim acabam batendo em outras paragens, tocando a sensibilidade de quem nem sequer está envolvido diretamente com a lide cartorária. Assim ocorre com as inesperadas respostas que me vêm pela internet, através de outras mensagens em garrafas. A pequena matéria publicada no BE #330, de 29 de junho p.p. - quod non est in retes non est in mundo mereceu, para minha surpresa, comentários dignos de registro. Dentre outros, releva a message in a bottle postada pelo atento amigo Marcel Goureis ([email protected]). À parte as considerações musicais, antropológicas e culturais - a que o amigo sempre acena, para fincar referências e instaurar um redutor simbólico que possa funcionar como verdadeiro código para nossa comunicação - o fato é que ele acabou expressando uma preocupação bastante atual e muito pertinente acerca do funcionamento dos registros prediais brasileiros. Meu amigo apontou com muita clareza os desafios que precisam ser ultrapassados por todos nós - desafios que na verdade se põem a toda sociedade brasileira, diria eu, e não meramente aos registradores prediais. Afinal, parafraseando o poeta, podem-se questionar as atividades registrais: existirmos - a que será que se destina? Questões que jazeram anos a fio e agora, tal como as pedras mitológicas, pertubadoramente clamam: qual é o registro predial de que a sociedade brasileira necessita? Qual será o perfil desses profissionais no novo milênio? Como construí-lo para melhor responder às ingentes demandas sociais? Qual deve ser a eficácia decorrente do Registro? Qual o modelo de sua organização operacional? Deve ser estatizado? Deve ser extinto? Deve ser substituído por outros mecanismos de proteção do tráfico imobiliário? Essas respostas devem ser obtidas sem qualquer parti pris - seja em função de certas convicções políticas e ideológicas, cujo vezo estatizante desconsidera olimpicamente a sociedade organizada, seja em virtude de uma mal ajambrada tradição que vê nos cartórios meros sustentáculos das elites dominantes, seja ainda em decorrência de certa visão ultra-liberal que identifica nos cartórios meramente um enguiço estatal. Uma compreensão verdadeira dos serviços notariais e registrais haveria de encontrá-los onde sempre estiveram: no seio da sociedade, como uma verdadeira e indispensável necessidade. É preciso escoimar a instituição dos graves preconceitos, remarcados, lamentavelmente, por recentes episódios que inquinam os serviços notariais e registrais brasileiros. No colóquio ilustrado com meu amigo, nossas referências lítero-musicais sempre acabam descerrando passagens inesperadas. A mais recente foi extraída da literatura latino-americana. Fui advertido há alguns anos, pelo culto prefácio de Antonio Pau Pedron, apresentando uma obra muito citada entre nós (Chico Y Ortiz, Estudios sobre derecho hipotecario) do texto extraído do clássico Cem Anos de Solidão. De maneira lapídar, o escritor colombiano traduz a função registral por estas plagas latinas: "Era uma alegação desnecessária, porque Arcadio não tinha ido lá para fazer justiça. Ofereceu-se simplesmente para criar um cartório de registro de imóveis para que José Arcadio legalizasse os títulos da terra usurpada, com a condição de que delegasse ao governo local o direito de cobrar as contribuições." (Gabriel García Márquez, Cem Anos de Solidão). Depois de muita digressão, concluía com meu interlocutor: irmãos siameses no suporte legal e jurídico à oligarquia fundiária, o Estado Brasileiro e os serviços registrais têm culpa no cartório... Pois é. Vejam que o senso comum invadiu o circuito estrito do jargão técnico e jurídico quando se observa a qualificação depreciativa de cartorial a todo enguiço burocrático. Essa contaminação simbólica já não permite que os profissionais do direito enxerguem a verdadeira importância do sistema, soçobrando melancolicamente aos pés do biombo simbólico que se formou e que contamina o discurso autorizado por uma sintaxe ardilosamente conotativa, desviando os verdadeiros e sãos sentidos da instituição. O mais curioso é que os maiores detratores dos registros públicos, aqueles que pregam a sua extinção pura e simples, acreditando piamente (trata-se de curiosa devoção secular aos novos bezerros tecnológicos) na capacidade todo-suficiente do Mercado, propugnam o desmonte dos registros públicos, dando ensanchas a que esse serviço, sendo uma verdadeira necessidade social, acabe por ser atraído sem defesas pela voragem anárquica do Mercado. A autenticação dos documentos eletrônicos e firmas digitais haverá de ser o triste signo desse fenômeno de re-privatização dos interesses públicos, sem qualquer controle social. O meu amigo não deixou de notar - como leitor atento que é - a guinada na linha editorial deste Boletim Eletrônico e mesmo das revistas e boletins editados pelo Irib. Tem razão quando aponta que, pouco a pouco, foram-se insinuando nas páginas da RDI e dos Boletins do IRIB artigos de economistas, ladeados de textos de valorização institucional. A estratégia foi perfeitamente identificada: não se tratava tão-somente de trazer aos leitores uma abordagem mais ampla e menos rígida dos temas de seu estrito interesse. O objetivo era arrancar os profissionais encarregados desse mister do ensimesmamento a que o Direito condena, por uma espécie de vício auto-recursivo de suas estruturas lógicas. Pois bem, o alvo era apresentar uma visão multidisciplinar do fenômeno que cerca o mercado imobiliário e suas garantias formais e materiais. O missivista tocou no ponto. Mais do que nunca se faz oportuna uma análise séria dos custos envolvidos em cada transação econômica relacionada com o trafico de bens imóveis. Além disso, é preciso verificar a eficiência da infra-estrutura das garantias das transações, isto é, segurança estática do adquirente e segurança jurídica dinâmica, relacionada com o tráfico jurídico imobiliário, captação de recursos de mercados secundários e firmeza das garantias do investimento. Aliás, tivemos contato com estudos feitos pelo Secovi demonstrando que as causas da retração do mercado imobiliário não são decorrência, nem de longe, da "burocracia documental" dos cartórios, nem de seus custos. Esses estudos estão servindo de base para a elaboração de outro visando identificar de que maneira a conflagração de litígios relacionados diretamente com a contratação privada, com o clandestinismo jurídico (contratos de gaveta, instrumentos particulares), a depressão do valor dos registros públicos e outros problemas agravam ainda mais os custos relacionados com as transações imobiliárias. Não pode ser ignorado o fato de que os sistemas de registro de segurança jurídica - como é o caso do registro predial brasileiro - foram recomendados pelo Banco Mundial para viabilizar, justamente, o aporte de investimentos na área imobiliária na antiga União Soviética. O leste europeu, com a queda do muro de Berlim, se viu diante do desafio de rearticular mecanismos de segurança jurídica para viabilizar o financiamento de bens de raiz. E o registro imobiliário, com a feição que apresenta o nosso próprio, foi enfaticamente recomendado como o mais econômico e eficaz instrumento de garantia do capital investido. Isso não é por acaso e é lamentável que os técnicos não estejam advertidos do valor do registro predial brasileiro. Aliás, posso recomendar excelente leitura: El Registro de la Propiedad Español y las Recomendaciones del Banco Mundial - José Poveda Díaz - RDI 39/5. Por fim, gostaria de replicar ao caro Marcel Goureis, que a Meca tecnológica do mundo, O Império, está a colonizar nossos computadores, corações e mentes, impingindo-nos soluções não consentâneas com nossas tradições jurídicas e sociais. Falo especificamente do modelo norte-americano de transações e "registros imobiliários", cuja eficácia seria mais do que duvidosa num sistema jurídico que apresenta o perfil do brasileiro. Sei de suas predileções pelo informalismo do sistema norte-americano, mas esse modelo não se aplica aos países da tradição do direito continental. Permita-me dizer claramente que esse encantamento colonizado leva a expectativas frustradas e a uma maior confusão. Percebi isso claramente no debate com alguns empresários do setor imobiliário que veraneiam em Miami e se cultivam nos parques temáticos da Flórida, adquirindo apartamentos em Coral Gables e experimentando a informalidade dos negócios jurídicos imobiliários. Tudo isto entre um McDonald e outro. Mas esteja certo, caro Marcel, estamos vencendo preconceitos e ultrapassando obstáculos. Admiravelmente, alguns desses entraves, diria que os mais renitentes, acham-se justamente em nosso meio. É difícil vencer a resistência do ancién régime - se é que me pode entender. As vaidades pessoais e os interesses que se não explicitam acabam toldando todas as iniciativas sérias para o aperfeiçoamento dos serviços registrais e notariais brasileiros. Voltarei ao questionado tópico da disciplina legal dos registros prediais brasileiros. Esse assunto merece outra mensagem na garrafa. Abraços do, Jacomino.
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
2703
Idioma
pt_BR