Notícia n. 2665 - Boletim Eletrônico IRIB / Junho de 2001 / Nº 329 - 25/06/2001
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
329
Date
2001Período
Junho
Description
O Estatuto da Cidade Raquel Rolnik* - Mais que documento técnico, o plano é um espaço de debate por uma estratégia de intervenção no território. Acaba de ser aprovado por unanimidade pelo Senado o Estatuto da Cidade, lei que regulamenta o capítulo de política urbana da Constituição Federal de 1988 (artigos 182 e 183). Essa lei, que vinha tramitando no Congresso havia mais de dez anos, delega aos municípios e aos seus planos diretores a tarefa de definir, no âmbito de cada cidade, as condições de cumprimento da função social da propriedade e da própria cidade. Disponibiliza para o planejamento municipal novos instrumentos de controle do solo urbano e introduz novas estratégias de gestão municipal. A partir de agora, áreas vazias ou subutilizadas situadas em áreas dotadas de infra-estrutura estão sujeitas ao pagamento de IPTU progressivo no tempo, de acordo com as diretrizes de uso e de ocupação da terra previstas para a região pelo plano diretor. A adoção desse instrumento pode representar uma luz no fim do túnel para as cidades que, em vão, tentam enfrentar a expansão horizontal ilimitada, avançando vorazmente sobre áreas frágeis ou de preservação ambiental. Que cidade média ou grande de nosso país não tem uma ocupação precocemente estendida, levando os governos a uma necessidade absurda de investimentos em ampliação de redes de infra-estrutura (pavimentação, saneamento, iluminação, transporte) e, principalmente, condenando partes consideráveis da população a viver em situação de permanente precariedade? Que cidade média ou grande de nosso país não é obrigada a transportar, cotidianamente, a maior parte da população para os locais em que se concentram os empregos e as oportunidades de consumo e de desenvolvimento humano, desperdiçando inutilmente energia e tempo? Mas não reside apenas na regulamentação desse instrumento a importância do Estatuto da Cidade. Na verdade, pela primeira vez em nossa história temos uma regulação federal para a política urbana que se pratica no país, definindo uma concepção de intervenção no território. Isso se afasta da ficção tecnocrática dos velhos planos diretores de desenvolvimento integrado, que tudo prometiam, mas não possuíam instrumentos para realizar o modelo idealizado proposto. De acordo com as diretrizes expressas no estatuto, os planos diretores devem contar, necessariamente, com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos econômicos e sociais não apenas durante o processo de elaboração e votação, mas, sobretudo, na implementação e na gestão das decisões do plano. Assim, mais do que um documento técnico, normalmente hermético ou genérico e distante dos conflitos reais que caracterizam a cidade, o plano é um espaço de debate dos cidadãos e de definição de opções, conscientes e negociadas, por uma estratégia de intervenção no território. Ainda no campo da ampliação do espaço da cidadania no processo de tomada de decisões sobre o destino urbanístico da cidade, o Estatuto da Cidade prevê o "estudo do impacto de vizinhança" para empreendimentos que a lei municipal considere como promotores de mudanças significativas no perfil da região onde se instalar. Inclui a obrigatoriedade de controle direto, por representação da sociedade civil, das operações urbanas. Operações urbanas, de acordo com a lei, são definições específicas para uma certa área da cidade que se quer transformar. Prevêem um uso e uma ocupação distintos das regras gerais que incidem sobre a cidade e que podem ser implantadas com a participação dos proprietários, moradores, usuários e investidores privados. O Estatuto da Cidade admite a possibilidade de que essas operações ocorram, mas exige que cada lei municipal que aprovar uma operação como essa deva incluir, obrigatoriamente, o programa e o projeto básicos para a área, o programa de atendimento econômico e social para a população diretamente afetada pela operação e o estudo de impacto de vizinhança. Com essas medidas, procura-se evitar que as operações sejam somente "liberações" de índices construtivos para atender a interesses particulares ou a simples operações de valorização imobiliária que impliquem a expulsão de moradores de baixa renda. O estatuto, por meio da institucionalização do direito de superfície e da outorga onerosa do direito de construir, consagra a idéia do solo criado. A idéia é muito simples: se as potencialidades dos diferentes terrenos urbanos devem ser distintas em função da política urbana (áreas que, por causa da infra-estrutura instalada, devem ser adensadas, ou áreas que não podem ser intensamente ocupadas por apresentarem alto potencial de risco de desabamento ou alagamento, por exemplo), não é justo que os proprietários sejam penalizados ou beneficiados individualmente por essa condição, que independeu totalmente de sua ação sobre o terreno. Assim separa-se um direito básico, que todos lotes urbanos devem possuir, dos potenciais definidos pela política urbana. Muitas cidades no Brasil não esperaram o estatuto para aplicar com êxito essas inovações. Um movimento nacional pela reforma urbana, que desde a Constituinte vem lutando pela aprovação do estatuto, tem também atuado em nível local para romper o cinismo dominante na política urbana que se pratica no país, a qual reitera nos planos e nas leis uma regulação urbanística excludente. O estatuto - esperamos que possa ser o mais brevemente possível sancionado pelo presidente e assumido pelos planos diretores nos municípios - abre uma oportunidade nova e desafiante para os cidadãos e os administradores locais: a oportunidade de intervir concretamente sobre o território, na perspectiva de construir cidades mais justas e belas. (Folha de São Paulo, 25/6/2001) * Raquel Rolnik, 44, urbanista, é professora e coordenadora do mestrado de urbanismo da PUC de Campinas e pesquisadora do Instituto Polis. Foi diretora de Planejamento na administração municipal de Luiza Erundina (89-92).
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
2665
Idioma
pt_BR