Notícia n. 2348 - Boletim Eletrônico IRIB / Março de 2001 / Nº 295 - 27/03/2001
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
295
Date
2001Período
Março
Description
Brasil não tem normas e leis de testamento vivo Paulo Roberto G. Ferreira, notário em São Paulo. - O músico sai para passear. Voa com a mulher no aeroplano ultraleve, como era hábito. Um problema mecânico, uma falha humana, não sabemos, um capricho ou a regularidade do destino: o ultraleve cai, mata a esposa, deixa o músico sem domínio dos sentidos e da vontade própria. Herbert Vianna, músico do grupo Paralamas do Sucesso, está há dias numa cama de hospital. Sua saúde dá sinais otimistas de recuperação. Ele quase perdeu esta luta. Como ele, infelizmente, milhares de pessoas, todos os anos, submetem-se aos desígnios do destino, seja por acidentes ou pela debilitação gradativa da saúde. Muitos, porém, não têm a mesma sorte do músico. Inconscientes, ou em estado de coma, não são hábeis para manifestar a vontade. Uma vida, suas ramificações de relações e direitos e deveres, bens, negócios, planos, tudo fica em suspenso. Os atuais avanços da medicina possibilitam uma vida melhor e mais longa, mas, por outro lado, os pacientes são confrontados com doenças, tratamentos e estados terminais de vida mais prolongados. Nestes períodos, a vontade da pessoa submetida a tratamento, quanto à sua própria vida e saúde, é substituída pelas decisões técnicas médicas. Quando estes profissionais confrontam-se com algum dilema moral ou ético, consultam a família. O paciente já não tem voz e vontade. O testamento vivo é um documento com as decisões de uma pessoa a respeito de seu tratamento médico e seus eventuais efeitos para valer na oportunidade em que esta pessoa não possa mais manifestar a vontade (cf. A. Santosuosso, "A proposito di living will" e "di advance directives: note pre il dibattito, in Politica del diritto, março de 1990, 477-497). Eu penso que se possa prever mais, possibilitando ao doente ou mesmo qualquer pessoa que, sadia, deseje prevenir-se quanto às fatalidades, dispor sobre seu tratamento, sobre relações familiares e a continuidade de seus negócios, inclusive no tocante ao patrimônio. Leis a respeito já existem em países como Estados Unidos, Canadá e Dinamarca. O testamento vivo é uma forma de "auto-determinação preventiva", ou seja, ato de manifestação da vontade em caso de possível e futura incapacidade. É direito individual que se pretende garantir ainda com superveniente alteração da capacidade civil. No Brasil não há norma a respeito. Sequer temos projeto de lei proposto, como já ocorre, por exemplo, com a Itália. Na falta da lei, vou buscar no ordenamento atual bases para este direito. Como se sabe, em nossa lei, testamento é o ato revogável pelo qual a pessoa dispõe do seu patrimônio para depois de sua morte (art. 1626 CC). Além das disposições patrimoniais, o testamento pode conter o reconhecimento da filiação. Não há, portanto, no direito pátrio, testamento para valer em vida. Quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses, teremos o mandato, previsto no art. 1288 CC. Não poderíamos tratar este novo ato como mandato porque este pode ser extinto quando operada a interdição de uma das partes, neste caso, o mandante (art. 1316, inc. II, CC), o que, se pleiteado e deferido judicialmente, inviabilizaria a vontade daquele que manifestou o desejo no testamento vivo. Há também outra espécie de contrato prevista no Código Civil que tem características similares ao testamento vivo: é a gestão de negócios (art. 1331 CC). Ocorre que, neste contrato, o gestor age exclusivamente para tratar dos negócios, caso em que não poderia tomar, então, decisões sobre tratamentos médicos e até questões familiares. Além disso, o Código prevê que a gestão de negócios só ocorre quando não há autorização do interessado - bem ao inverso do que se propõe -, o que provoca insegurança jurídica para o gestor e para aqueles com quem age ou negocia. A Constituição Brasileira tem princípios basilares que anteparam o testamento vivo. O direito à vida (art. 5º, caput), à liberdade de ação e princípio da legalidade, consubstanciados na máxima "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" (art. 5º, inc. II), à liberdade de pensamento (art. 5º, inc. IV), o direito à integridade física (art. 5º, inc. III) e, finalmente, o direito à liberdade de crença e religião (art. 5º, inc. VI). Todos estes princípios e direitos fundamentam a possibilidade de alguém precaver-se e antecipar decisões a respeito de sua saúde, vida privada e seus negócios através do testamento vivo. O artigo 129 do Código Civil, princípio da ampla liberdade da forma dos atos jurídicos prevê que a validade das declarações de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir, reportando-se esta previsão ao artigo 82. Este artigo exige, para validade do ato jurídico agente capaz, objeto lícito e forma prevista ou não proibida pela lei. O direito individual de decidir sobre a saúde, a vida, o patrimônio e questões de família não pode ser limitado pela impossibilidade superveniente de manifestar a vontade se esta já foi expressa por ato unilateral. Nem, tampouco, este ato poderá ser afastado por uma posterior incapacidade. Apesar de inexistir previsão de um ato ou contrato com estas características no Código Civil, os princípios constitucionais e gerais do Direito impõem que se respeite as decisões de uma pessoa feitas para valerem em caso da superveniente incapacidade de confirmá-las. Evidentemente, certas decisões podem vir a ser exigidas que não previstas no ato declaratório. Contudo, o "testador vivo" poderá, prevendo-as, indicar linhas gerais da sua vontade ou nomear alguém de sua confiança para decidir por si. Parece-me possível, a vista destas normas, que alguém faça o testamento vivo, restando enfrentar a resistência daqueles avessos à novidades. A tradição, os costumes, mais que fontes ativas do Direito são forças conservadoras e oponentes da evolução. Devido à sua natureza, ato unilateral tendente a manifestar vontade para produzir efeito quando a pessoa não tiver mais capacidade de manifestá-la, e também pela relevância dos direitos em jogo - a saúde, a vida, o patrimônio, a família -, creio que uma futura proposta legislativa deve exigir a formalidade prevista no artigo 134 do Código Civil, deixando aos notários a tarefa de lavrarem estes atos. É importante para a sociedade e para as pessoas interessadas que decisões tão importantes tenham a máxima segurança, sendo respeitadas e inquestionadas judicialmente. O notário, como agente do Estado a serviço da jurisdição privada, profissional que orienta com imparcialidade e evita falsidades e disposições contrárias à lei, atenderia este requisito. Ademais, os atos formalizados por escritura pública têm pleno valor probatório e força executiva, sem qualquer outra formalidade, o que acelera e barateia o custo da Justiça. Finalmente, outra vantagem é que os documentos ficam conservados em segurança, com possibilidade de fácil e fiel reprodução futura. Adotado o testamento vivo, teríamos, no Brasil, nova e importante garantia da eficácia de direitos individuais como a vida, a saúde, a religião e as convicções morais, as relações familiares, o patrimônio. Os desígnios de Deus, ou da Natureza, como queira, terão o contrapeso de nossa humanidade. (Gazeta Mercantil, 14/2/2001 Paulo Roberto G. Ferreira é 26º Tabelião de Notas de São Paulo é diretor da Anoreg, Associação do Notários e Registradores)
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
2348
Idioma
pt_BR