Notícia n. 2188 - Boletim Eletrônico IRIB / Dezembro de 2000 / Nº 256 - 18/12/20
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
256
Date
2000Período
Dezembro
Description
A RESERVA DE PRIORIDADE Sérgio Jacomino - A preocupação com a recuperação dos sentidos engastados em centenas de diplomas normativos acerca dos registros públicos e notarias brasileiros tem-nos levado nos últimos anos a um meticuloso trabalho de arqueologia documental. Motivados pela escassez de trabalhos produzidos com o fito exclusivo de desentranhar dos arquivos públicos os diplomas legais ou normativos que fundamentaram, a seu tempo, a instituição, organização e funcionamento dos órgãos da fé pública no Brasil, publicamos o marco doutrinário que representa o trabalho de João Mendes de Almeida Jr. em nosso meio, justamente nominado Órgãos da fé pública. Com a publicação na íntegra desse alentado trabalho - que ocupou exclusivamente a edição n. 40 de nossa Revista de Direito Imobiliário, comemorando o centenário da obra do grande processualista brasileiro - lançávamos as sementes de um projeto mais ambicioso: conglutinar nas páginas da prestigiosa revista o acervo de leis, decretos, alvarás, regulamentos e atos normativos diversos que se acham dispersos em várias fontes, propiciando aos pesquisadores o acesso a material de difícil compulsação. Retomando a idéia original, publicamos a seguir o pouco conhecido Decreto n. 482, editado em 14 de novembro de 1846 à época do Imperador Pedro II, através do Ministro José Joaquim Fernandes Torres, para ser cotejado com a proposta legislativa do advogado Melhim Namem Chalhub. O Decreto 482 regulamentava o artigo 35 da Lei Orçamentária 317, de 21 de outubro de 1843, cuja única referência aos registros pública era assim redigida: "art. 35. Fica creado um Registro geral de hypothecas, nos lugares e pelo modo que o Governo estabelecer nos seus Regulamentos". Veio assim a lume o nosso primeiro regulamento hipotecário, onde se pode encontrar preciosidades pouco exploradas pelos pesquisadores. Exemplo disso é a concepção harmoniosa e bem-acabada da chamada reserva de prioridade, que tantos debates tem rendido em nosso meio. No ano de 1993, por ocasião do XXII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil - realizado em Cuiabá, Mato Grosso - o registrador gaúcho João Pedro Lamana Paiva et alii, em bem fundamentado trabalho intitulado Da transação imobiliária - uma aventura jurídica - reserva de prioridade - apresentou à comunidade de estudiosos do direito registral imobiliário uma proposta de solução para esse velho novo problema da corrida ao Registro de Imóveis para garantia da prioridade. O trabalho suscitou animado debate entre os presentes às sessões plenárias. As objeções apaixonadas não lograram transpor os limites daquele encontro e nem desabrocharam em contestação fundamentada e articulada em publicações especializadas ou encontros subseqüentes de registradores. A sua contribuição remanesceu nas páginas do Registro de Imóveis - Estudos de direito registral imobiliário - XXII Encontro dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil - Cuiabá - Mato Grosso/1995, editado pelo Sérgio Fabris e Irib em 1997, p. 311. Ocorre que o problema não foi devidamente enfrentado e o sem-número de percalços enfrentados pelos adquirentes de imóveis está a reclamar um debate proveitoso entre os profissionais do direito que atuam na área do registro imobiliário brasileiro. Os argumentos desenvolvidos pelo registrador gaúcho encontraram eco entre os estudiosos do direito registral. O conhecido advogado Melhim Namem Chalhub apresenta-nos uma proposta consubstanciada em anteprojeto de lei a ser enviado ao Congresso Nacional, tratando precisamente da reserva de prioridade. Aproveita a idéia desse mecanismo de retroprioridade para agilizar e dar segurança às operações de securitização dos créditos imobiliários instituída pela Lei 9514/97, como abaixo teremos ocasião de examinar. A ocorrência de legislação em nosso continente deve ser conseqüência de uma verdadeira necessidade social. A segurança jurídica sempre nos impõem a necessidade de conceber mecanismos para seu aperfeiçoamento. Na busca de uma matriz doutrinária para iniciativas legais que parecem coincidir - ao menos em seus efeitos - levou-me a compulsar antigos alfarrábios para atingir as razões de sua adoção em alguns países. Nessa aventura de arqueologia documental, deparei-me - guiado pela argúcia do Des. Narciso Orlandi Neto - com a ocorrência da reserva de prioridade no primeiro diploma legal brasileiro que regulamentou o registro geral de hipotecas no país: Decreto 482, de 14 de novembro de 1846. Na verdade, a solução de uma reserva de prioridade foi ventilada mais de uma oportunidade. Segundo nos afiança García García (Derecho inmobiliário registral o hipotecário, Madrid : Civitas, 1993, t. II, p. 662) a idéia foi proposta nos alvores do século, com a reforma hipotecária espanhola de 1909. O Senado espanhol havia aprovado a chamada certificación de clausura del registro, mas a proposta acabou não prosperando no Congresso, de forma que dita reforma hipotecária não veio a consagrar o instituto. E tal se deu pela consistente refutação de Martinez Prado, para quem a certificación de clausura deveria ser descartada e seu uso obviado por uma prática corrente do Banco Hipotecário Espanhol: simplesmente não se entregaria o dinheiro até que não fosse registrada a hipoteca - prática aliás corrente no Brasil para os contratos hipotecários do Sistema Financeiro da Habitação. Mas o fato é que a leitura atenta desse diploma legal vai descerrar muitas surpresas. Os antigos tabeliães do registro estavam obrigados a relatar minudentemente todos os assentos - registros, anotações e averbações - declarando-se o nome de quem a requereu, imperando o princípio de rogação para a consecução da publicidade formal e material do registro. A legitimidade do requerente deveria ser cuidadosamente apurada pelo tabelião do registro (art. 25 e 26) pois da simples expedição da certidão negativa do registro irradiar-se-iam efeitos de direito material (art. 28), nomeadamente a retro eficácia da prenotação ou retroprioridade, como hoje diríamos. Curioso notar como a praxis cartorária conservou o receituário descritivo das certidões - "certifico a pedido feito por parte interessada..." A movimentação do mecanismo registral, por instância ou solicitude da parte interessada - interesse juridicamente apurado e qualificado pela atuação do registrador - se dá de maneira estrita para o caso da expedição da certidão. De outra parte, o interesse no registro das hipotecas se reconhecia mais amplamente aos credores, devedores "e quaisquer outras pessoas interessadas em que os direitos hipotecários se conservem". (art. 5) As certidões expedidas tinham validade por seis meses. Nesse interregno, em que o ato notarial deveria aperfeiçoar-se, poderiam aportar títulos contraditórios, mas esses não prejudicariam outro, para cuja eficácia e preferência foi expedida anteriormente a certidão do registro (art. 28). Curioso notar, ainda, que o livro protocolo (livro 2), previsto no artigo 22 do Regulamento, servia, na dicção legal, para os apontamentos de "minutas", averbações e anotações das certidões negativas que passassem os chamados tabeliães do registro. Mas os títulos deveriam ser igualmente protocolados imediatamente, conforme dispunha expressamente o art. 10 e mesmo as certidões "afirmativas" eram objeto de assentamento no livro 1 - registro geral das hipotecas (art. 22). O estudo das disposições contidas nesse Regulamento podem iluminar aspectos que eram relevantes à época dos grandes monumentos legislativos, como alguém qualificou o séc. XIX. À época do advento do Decreto 482, em 1846, as grandes distâncias que mediavam os municípios e as comarcas do Império e o tempo que se levava para transpô-las em lombo de mulas, representavam um alto risco para a segurança dos negócios jurídicos. O peso das distâncias e do tempo se vê com clareza na disposição contida no artigo 3o do Regulamento em comento: os registros em comarcas limítrofes não tardariam mais do que o tempo necessário, contando-se a distância à razão de duas léguas por dia, ou o equivalente a 12 quilômetros (art. 3o). É curioso e digno de nota assinalar um certo sincronismo entre as exigências e necessidades sentidas no século passado com as contemporâneas. O tempo e o espaço tinham que ser vencidos por meio de recursos que à época estavam às mãos - e o período periclitante, que medeia a celebração do negócio e a efetivação do registro, encontrava na reserva de prioridade, ou no cerre do registro pela certificação negativa, sua solução viável. Novamente a questão é ventilada em projetos de leis, justamente numa época em que as transações eletrônicas, com a nota de instantaneidade que as singulariza, impõem-nos a necessidade de recuperar o sentido original da reserva de prioridade, para acautelamento das partes contratantes em face das intercorrências aziagas que podem calhar no interregno da contratação. Outro aspecto digno de nota - e o leitor deverá logo perscrutar o decreto que se segue - é a prototipagem da chamada dúvida registral. Contrariamente ao que se pensa, a dúvida registral não foi inaugurada com o Regulamento de 1865. Quase vinte anos antes, a recusa da prática do ato de registro hipotecário, fundada em questões procedentes, poderia obsta-lo totalmente. De outra sorte, se a demora no registro, ou a recusa de sua prática, fosse julgada improcedente, nem assim o registro se faria: o tabelião do registro averbaria a sentença proferida pelo juiz municipal do termo no livro protocolo, e em tais casos dita sentença de justificação supriria a falta do próprio registro. É o que ressalta do art. 31 do Decreto 482 de 1846. A atuação do encarregado do registro não era, pois, de mero amanuense ou copista. Sua atuação jurídica avultava, pois era reconhecida, e respeitada, entre suas atribuições, a denegação de acesso a títulos irregulares, opondo aos interessados a recusa fundamentada. Vê-se, portanto, que o Decreto abaixo transcrito, com a redação e ortografia originais conservadas, é fonte de pesquisa de alto valor científico e justifica a sua republicação e dos demais, que se seguirão, sempre coletados com rigor e acuro.
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
2188
Idioma
pt_BR