Notícia n. 1896 - Boletim Eletrônico IRIB / Agosto de 2000 / Nº 224 - 08/08/20
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
224
Date
2000Período
Agosto
Description
Registro de Imóveis: O Lado Humano - A idéia nasceu no ano passado, durante o Encontro de Recife, lembra o Dr. Ulysses da Silva (Registrador aposentado em São Paulo), "numa conversa com o editor Sérgio Fabris, que sugeria que se escrevesse um livro de casos acontecidos nos cartórios." Aceitando o desafio e a sugestão, o Dr. Ulysses da Silva começou a pesquisar e a juntar os casos que conhecia. O resultado são os vinte e quatro contos reunidos que trouxe a público em Vitória, misturando realidade e ficção em doses certas para fazer rir ou emocionar o leitor. A seguir, uma amostra da veia literária do registrador. A face oculta da caridade Ulysses da Silva Há muitos anos atrás, o Oitavo Registro de Imóveis de São Paulo, do qual fui titular e onde comecei como auxiliar, localizava-se na Rua Barão de Paranapiacaba, que, apesar do pomposo nome, era via de um único quarteirão, começando na Praça da Sé e terminando na Rua Quintino Bocaiúva. A Sé era, nesse tempo, o centro da cidade e o ponto inicial de inúmeras linhas de ônibus e bonde, sempre com muita circulação de pessoas, especialmente de manhã e à tarde. Justamente por essa razão, era procurada pelos mendigos. Entre eles havia um cego, acompanhado de um menino, que corria as filas cutucando pessoas desprevenidas, causando revolta. Sentados na calçada, recostados no frio concreto dos prédios, viam-se dois ou três mutilados, exibindo suas pernas de pau ao lado dos vendedores de bilhetes de loteria e compradores de ouro velho. Outro não tinha ambas as pernas e locomovia-se em rústica prancha de madeira, montada sobre rolimãs e impulsionada por suas mãos negras do asfalto. Em uma bolsa de couro, que trazia a tiracolo, depositava as esmolas. Vinda do Largo São Francisco, seu ponto habitual, de vez em quando aparecia uma figura de mulher magra, até bem feita de corpo, mas que mostrava um rosto horrendo, completamente deformado por sérias queimaduras. Boca retorcida, dentes amarelos, serrilhados, um olho fechado e outro repuxado, parecia personagem de conto de terror. Essa era sua arma. Postava-se à porta das lojas, assustando fregueses e somente saía depois de receber boa nota. Entre os mendigos mais conhecidos havia uma senhora simpática, meio gorda, de certa idade, que usava saia rodada e longa, com dois grandes bolsos laterais. Vez ou outra eu lhe dava esmola. Estava naquela vida há muitos anos e, como pude constatar, outros tantos permaneceu. Certo dia, apareceu no cartório ofegante, porque subira pelas escadas, pedindo, antes de mais nada, cadeira para recompor-se e um copo de água. De um de seus bolsos retirou pequeno pedaço de papel de embrulho com o nome escrito de uma pessoa. Queria saber se era proprietária de uma casa na Freguesia do Ó. Fiz a busca na hora e encontrei registro. Agradeceu e foi-se embora. Por cinco ou seis dias fiquei imaginando o que simples pedinte pretendia com a informação. A dúvida foi desfeita pouco depois, quando lá veio ela com um canudo na mão. Abria-o e era uma escritura pública, pela qual adquiria pequena casa em terreno de bom tamanho. Ao retirar o título, na data marcada, assustou-se com o preço do registro e, entre lágrimas aparentemente sentidas, disse que pagara a casa em prestações, durante vários anos, vivia da caridade alheia e, ajoelhada, segurando minhas mãos, pedia, em nome de Santa Gertrudes, que eu a dispensasse do pagamento. De fato, a escritura era outorgada em cumprimento a antigo contrato particular. Fiquei sensibilizado e não cobrei nada, pensando ganhar, com esse gesto nobre, indulgências suficientes para meu ingresso no Paraíso. Passado o êxtase, lá, bem no fundo, nasceu tênue desconfiança de que praticara generosidade com chapéu alheio, porque na época era simples escrevente. No fim do mês não deu outra, a desconfiança transformou-se em absoluta certeza: o Oficial descontou do meu salário, sem perdão, a importância não recebida e ainda me passou um sermão. Decorridos vários anos, notei que a mulher não mais era vista na praça. Logo depois, li nos jornais, em reportagem bastante comentada na época, que fora encontrada morta em um casebre da periferia, segurando, em suas mãos bem fechadas, um maço de escrituras de compra de várias casas e uma caderneta de poupança com boa quantia de saldo.
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
1896
Idioma
pt_BR