Notícia n. 1616 - Boletim Eletrônico IRIB / Abril de 2000 / Nº 193 - 10/04/20
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
193
Date
2000Período
Abril
Description
Retificação de registro: O santo não foi citado Leonardo Cavalcanti - Paracatu, final do século XIX. O fazendeiro Imeliano Silva Neiva é um dos homens mais ricos do noroeste mineiro. Católico fervoroso e devoto de São Sebastião, ele contrata mestres construtores da região, importa esculturas do Rio de Janeiro e começa a erguer uma igreja dentro das suas terras. Depois da conclusão das obras, Imeliano morre em 1893. Antes, faz questão de registrar o último desejo: como é casado, mas não tem filhos, resolve doar 350 hectares (mais de 11 estádios do Maracanã juntos) da fazenda, onde estão a igreja e um cemitério, para São Sebastião - canonizado como mártir por ter sido um dos principais divulgadores do cristianismo entre os guerreiros romanos. Cento e sete anos depois da morte de Imeliano, as terras doadas ao santo estão no centro de uma das mais intrincadas batalhas jurídicas já vistas na cidade de Paracatu, distante 220 quilômetros de Brasília. A legitimidade da propriedade de São Sebastião sobre as terras está sendo questionada por outro fazendeiro, o médico Edson Mariano de Almeida, 58 anos, que se diz o verdadeiro dono da área. Como o santo não pode ser ouvido e não tem advogados constituídos, quem tomou as suas dores foi o bispo diocesano de Paracatu e da região, Leonardo Miranda Pereira, 63 anos. É que a Mitra Diocesana, essa sim, tem endereço, conta bancária, razão social e registro em órgãos federais - logo, pode contratar advogado. A briga jurídica é pelo reconhecimento de 45 hectares (450 mil metros quadrados) de terra - na verdade, o que restou da área total do santo. Explica-se: no dia 25 de julho de 1930, o então bispo da região, Dom Eliseu Van de Weyer, vendeu a maior parte da propriedade, 305 hectares, ao fazendeiro José Pereira Gonçalves. Na época, entretanto, o bispo fez questão de garantir os 45 hectares para o padroeiro da região, nada menos que o próprio São Sebastião. A transação está documentada no Cartório de Registro Imobiliário da Comarca de Paracatu pelo valor de um conto, quinhentos e vinte e sete réis. ''É UM ABUSO'' A peleja entre o médico Mariano de Almeida e o bispo Miranda Pereira começou em dezembro de 1997. Foi nesse período que o médico, dono das terras vizinhas às do santo guerreiro, fez uma retificação da área da sua propriedade. No novo registro, concedido pela própria Comarca de Paracatu, foram incluídos os 45 hectares de propriedade de São Sebastião. É nessa área que estão a igreja e o cemitério, segundo Dom Miranda. ''É um abuso. A terra do santo simplesmente foi tomada sem consideração'', diz o bispo, que apesar da declaração garante não querer partir para a guerra com o médico. ''Sou da paz, mas espero que ele (Mariano de Almeida) reconheça que a terra é do santo.'' Mesmo na esperança de que o médico reconheça o padroeiro como o dono das terras, o santo contratou um advogado - quer dizer, o bispo contratou um advogado - para enfrentar Mariano de Almeida na Justiça. Ele entrou com ação de anulação de retificação da área, alegando que o médico omitiu documentos e, assim, usou de má fé para incluir o pedaço de São Sebastião na sua propriedade. O principal argumento é que não foi verificada a cadeia dominial do imóvel (onde é identificado os nomes dos donos anteriores das terras) e alguns dos proprietários de terras vizinhas às do santo não foram ouvidos sobre a legitimidade da retificação. Oferecer herança a santos era comum entre os católicos do século passado. ''Hoje, isso não existe mais. A cultura moderna é marcada pelo individualismo'', afirma o bispo, que já preparou o seu próprio testamento. Vai oferecer o aparelho de som e os discos, além do rádio portátil para o seminário da cidade. O dinheiro da caderneta de poupança para os velhos do asilo São Vicente e os livros para a Biblioteca de Paracatu. O seu sucessor na residência fica com o telefone sem fio, o ventilador e o projetor de slides. EXPRESSÃO DA FÉ Mesmo como um dos personagens principais da pendenga, o médico Mariano de Almeida atua à distância. Ele saiu de Paracatu há 46 anos, quando tinha apenas 12 anos. Hoje, vive e trabalha em Mogi das Cruzes, a 47 quilômetros de São Paulo, mas costuma ir à cidade natal pelo menos uma vez a cada dois meses. Por telefone, o médico tenta se defender da acusação de ter usado de má fé na retificação das terras: ''Tudo foi feito dentro da lei. Não sabia que aquelas terras poderiam ser de um santo. A confrontação com as terras de São Sebastião não constavam em lugar nenhum'', afirma ele, que se diz católico-apostólico-romano. ''Não quero briga com o bispo e muito menos com a igreja. Sou capaz até de entrar em acordo com eles, desde que admitam que não usei de má fé para fazer a retificação da área da fazenda''. No decorrer da entrevista, entretanto, Mariano de Almeida mostra que o acordo com o bispo pode estar longe e afirma que as terras do santo só geraram interesse depois que ele promoveu melhorias no terreno. ''Aquelas terras sempre estiveram por ali e ninguém se interessou por elas. Depois que coloquei energia elétrica, formei as pastagens, apareceu a cobiça. Eu só quero trabalhar.'' Em Paracatu, Mariano de Almeida tem um aliado, o seu próprio advogado, Antônio José Franco - o autor da contestação da ação impetrada pela Mitra Diocesana. Um dos argumentos usados na contestação é o de que ''São Sebastião, como figura de fé, merece respeito, mas não é reconhecido pela legislação.'' Detalhe: o advogado admite ser evangélico e como todo evangélico não põe muita fé nos santos. O responsável por julgar a ação é o juiz da 2ªVara da Comarca de Paracatu, João Ary Gomes, de 43 anos. Ele afirma nunca ter passado por situação como essa, em que está em jogo a validade ou não do registro no nome do santo. ''É curioso. Afinal, se de fato as terras estão no nome do São Sebastião, ele (o santo) deveria ser chamado para contestar, mas isso não é possível'', diz, sem querer adiantar a decisão sobre a ação. O assessor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Gervásio Queiroga, afirma que no Direito Civil a intenção vale mais do que as próprias palavras. ''É evidente que o santo não precisa de terras. Foi a maneira desse fazendeiro expressar a fé. Assim, sob o aspecto jurídico, o terreno é da Diocese.'' RESTAURAÇÃO URGENTE Há mais gente interessada nas terras do santo: a presidente da Fundação Municipal Casa de Cultura de Paracatu, Maria das Graças Caetano. O motivo, porém, é mais nobre do que a simples posse das terras. Afinal, a igreja construída pelo fazendeiro Imeliano no século passado precisa ser restaurada com urgência. Caso contrário, vai desaparecer com a ação do tempo. As goteiras do telhado destruíram parte do madeiramento do piso e do altar e as paredes levantadas em adobe estão caindo aos pedaços. Isso sem contar com os roubos. Nos últimos anos, ladrões levaram o sino confeccionado em ouro e bronze e a imagem em tamanho real de São Sebastião - restou apenas uma outra um pouco menor que foi restaurada com o apoio da Casa de Cultura. ''Um pedaço da história de Paracatu está se perdendo'', alerta Maria das Graças, 47 anos. Natural de Coromandel (MG), casada e três filhos, ela mora em Paracatu há 15 anos. Desde 1993 responde pela coordenação da Casa da Cultura, do Arquivo Público, da Biblioteca Municipal e do Museu Histórico. E foi ela quem descobriu, no cartório da cidade, o registro de doação das terras ao santo. O cuidado do fazendeiro Imeliano na construção da igreja fez com que fosse tombada como Patrimônio Histórico Municipal ainda em 1958. Além de estar no meio de área verde privilegiada, a igreja apresenta traços do estilo colonial nos exteriores e, no altar, linhas barrocas. ''É um dos belos exemplares da igrejas rurais de Minas Gerais do século passado'', diz Maria das Graças, que em 1994 apresentou projeto de restauração ao Ministério da Cultura. O documento está em análise na secretaria de Patrimônio e pode ser um dos contemplados pela lei do mecenato (em que o governo federal autoriza a busca de recursos em entidades privadas, que, depois, podem debater o investimento no imposto de renda). Dona Maria Benta da Silva, 82 anos, uma das moradoras mais antigas do vale onde estão as terras do santo, não acompanha a burocracia do Ministério em liberar o projeto. Mas torce para que a igreja, onde se casou e batizou os sete filhos e os 28 netos, seja restaurada. Até dois anos atrás ela era freqüentadora assídua das missas. ''Deixei de ir porque as paredes pareciam que iam cair e as missas acabaram. Tomara que os padres voltem'', diz ela, ao lembrar que o sino roubado ecoava os seus badalos por todo o vale. ''Dava para ouvir de longe.'' Dona Benta ainda se encanta com as corujas grandes e brancas que vivem no alto da igreja: ''São diferentes das daqui da região.'' As corujas possivelmente são descendentes daquelas trazidas do Rio pelo fazendeiro Imeliano, que está enterrado dentro da igreja, ao lado do altar. (Correio Braziliense, 10/4/00)
Direitos
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Article Number
1616
Idioma
pt_BR