Notícia n. 1573 - Boletim Eletrônico IRIB / Abril de 2000 / Nº 189 - 04/04/20
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
189
Date
2000Período
Abril
Description
Cédula de crédito rural Ulysses da Silva - Em cartório de pequena cidade do interior apareceu, um dia, um senhor querendo falar com o Oficial. Homem rude, analfabeto, mãos grossas e rosto maltratado pelo sol, era dono de pequeno sítio no perímetro rural do município, de onde tirava o sustento de sua numerosa família. Ele ouvira falar que o governo estava financiando a agricultura e desejava obter informações a respeito, pois necessitava de pequeno empréstimo. Embora o assunto não fosse bem de sua alçada, o Oficial o atendeu e, com a intenção de ajudar, disse: - O banco poderá emitir uma cédula de crédito rural. Qual a garantia que o senhor pode oferecer? - Tenho lá o meu sítio. - Tem escritura registrada? - Pra que escritura, doutor, se me basta a palavra de quem me vendeu? - Só a palavra não é suficiente. O senhor tem trator ou máquina no sítio? - Não senhor. - E algum avalista? - Não sei o que é isso, doutor. - Uma pessoa que possa garantir o pagamento do empréstimo: um parente, um amigo. - Não tenho, não senhor e, se tivesse, não teria coragem de pedir. Sou homem honesto e não preciso de ninguém pra honrar minhas dívidas. - Assim fica difícil. Animais no sítio, o senhor deve ter, não é? - Animais? - Bois, cavalos ou burros, utilizados para arar a terra, puxar carroça ou carregar os fardos. - Ora, doutor, por que o senhor não disse logo? Tenho lá meus três filhos, que são meus burros de carga e duas filhas ótimas para puxar o arado, verdadeiras bestas de fortes. Meio sem graça, o Oficial procurou encerrar a conversa: - O melhor é o senhor ir ao gerente do banco e ele verá o que poderá fazer. Qual não foi a surpresa, quando, após alguns dias, o sitiante retornou ao cartório e apresentou para registro uma cédula de crédito rural. O registrador examinou-a e quase caiu sentado ao ler a garantia oferecida: "três burros e duas bestas". - Será que... Não, não é possível! Deve haver engano. Restabelecido do susto, atravessou a praça, dirigiu-se ao banco e indagou do gerente se ele havia mandado alguém vistoriar os bens apenhados. O bancário, sentindo invasão em sua esfera, disse-lhe: - Semoventes podem ou não ser objeto de garantia? - É claro que podem, mas... - Então qual o problema? Este é um bom dicionário. Vejamos o que é semovente. Aqui está: semovente - "ser que anda ou se move por si mesmo". Sem dizer mais nada, o Oficial voltou ao cartório e fez o registro. A cédula de crédito rural foi criada pelo Decreto-lei n. 167, de 14 de fevereiro de 1967, esclarecendo o seu artigo 15, quanto à modalidade pignoratícia, que "podem ser objeto de penhor cedular, nas condições deste Decreto-lei, os bens suscetíveis de penhor rural e de penhor mercantil". Entre eles encontram-se os veículos e máquinas usados na lavoura, colheitas futuras, safras, duplicatas e semoventes. Vou ao dicionário e leio: semovente - ser que anda ou se move por si mesmo. Eu sou meigo, Doutor! Sérgio Jacomino O Diário Oficial chegava um dia após pelo correio. A decretação da intervenção deveria ser comunicada vis-à-vis. Todo o cuidado era pouco. Mas tudo havia transcorrido com relativa calma. A fama de violento e altercador do oficial não se confirmou. Recebida a portaria, o velho registrador retirou-se respeitosamente das dependências do cartório, colocando-se à disposição do colega que o substituía. Nos dias que se seguiram, a imprensa local alardeava, até pelos auto-falantes da praça, o fato verdadeiramente novidoso. Decorridos dois ou três dias, o cartório viveu uma experiência singular: muitas pessoas traziam seus títulos para confirmar o registro e o domínio, ocasionando um colapso nas atividades corriqueiras. "Doutor, eu nunca vi tanta gente nesse balcão", confessava o escrevente admirado. O interventor, azafamado pelas múltiplas atividades, mal dava conta de atender aquelas humildes pessoas que não se contentavam em ser atendidas pelos funcionários, velhos conhecidos na cidade. Queiram o "Dr. interventor". Mas o melhor estava por vir: primeiro os escreventes, e por fim o próprio interventor, todos começaram a sofrer ameaças telefônicas. Era um vale-tudo, ligavam para o cartório, para a casa dos escreventes (segundo relatavam), para o hotel onde estava hospedado o interventor, ameçando de morte. Tamanha era a apreensão, que todos se acautelaram. O interventor passou a andar armado. Na manhã seguinte, um calor tórrido causava uma sensação de sufoco insuportável. De repende, adentra as dependências do cartório um sujeito mal encarado. Chapéu enterrado na cabeça, capote, botas terrosas e um olhar assustador. Para um citadino como o interventor, era o perfil acabado de um jagunço. Quedou-se ali, num canto mal iluminado, inerte, observando. Todos ficaram inquietos. O interventor espiava o 38 prateado ao alcance da mão. Tensão. Decorridos alguns minutos, o desconhecido avança decidido sobre o balcão e mete as mãos no capote. Inesperadamente saca uma escritura puída, amarelada pelo tempo e diz: "discurpa, doutor, mas eu sou meigo no assunto...". O interventor demorou alguns segundos para entender completamente a cena e ainda balbuciou - "hein??". O pobre emendou instantaneamente: "sou meigo no assunto, doutor". Suspiro geral, e o oficial ainda comentou: "meigos e ignorantes somos todos nós, meu senhor".
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
1573
Idioma
pt_BR