Notícia n. 1448 - Boletim Eletrônico IRIB / Março de 2000 / Nº 174 - 02/03/20
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
174
Date
2000Período
Março
Description
Dr. Rodolfo de Camargo Mancuso: "a vida é mais rica que o direito." - O tema basicamente é de processo civil porque coloca a ênfase no instrumento de que se trata aí. O tema proposto é a Ação Civil Pública como meio de controle judicial das políticas públicas. É um tema que ainda está em elaboração e pode ser interessante começar um esclarecimento por aí. O que vem a ser a expressão política pública? Até pouco tempo atrás se entendia, de forma um tanto equivocada, que haveria uma aproximação ou uma assimilação entre o termo política pública e os chamados conceitos vagos ou indeterminados. Em direito aparecem esses chamados conceitos vagos ou indeterminados por uma razão curiosa. É que, na verdade, a vida é mais rica que o direito. Como o direito é uma ciência que valora condutas e depois expressa essa valoração através de normas, o direito não tem como abarcar, na realidade fática e na experiência da sociedade civil, tudo aquilo que está acontecendo de relevante, então ele faz escolhas. Mas quando ele faz escolhas, ele vai por um processo de abstração, deixando coisas do lado de fora porque não pode normatizar tudo. Embora alguns textos sejam extensos, como o Código Civil, com 1807 artigos, há mais situações civis do que os 1807 artigos. Ou seja, ali também já foi feita uma escolha pelo critério de relevância. Paralelamente, para que o sistema jurídico possa funcionar, a gente costuma dizer que há uma presunção de plenitude ou de completude do ordenamento jurídico. O que significa isso? Supondo que muitas situações ficam lacunosas por falta de norma, então o direito começaria a sofrer de uma petição de princípio porque ele regularia algumas situações e muitas outras ficariam em aberto, o que daria a impressão de arbitrariedade. Por que algumas situações são reguladas e outras não? Daí a presunção de plenitude da ordem jurídica, isto é, presume-se que a ordem jurídica seja plena. Mas como compatibilizar a presunção da plenitude da ordem jurídica, de um lado, com essa circunstância de que o direito não tem como alcançar todos os fatos relevantes que vão acontecendo na sociedade? A forma de conjugar essas duas situações é a seguinte: o próprio direito, de uma maneira muito engenhosa, indica as formas pelas quais essas lacunas podem vir sendo preenchidas na prática, na experiência diária do direito, através das fontes subsidiárias. Ou seja, o direito faz uma triagem daquilo que acontece na sociedade civil, escolhe os temas relevantes, normatiza esses temas relevantes, ou seja, descreve condutas, coloca sanções, mas ele sabe que não pode alcançar tudo. E com relação ao resto que não está normatizado? Ele indica meios de integração ou fontes subsidiárias. Exemplo: costume, princípios gerais, analogia, eqüidade, doutrina, jurisprudência... É um jeito que o direito tem de fechar o seu sistema para poder ganhar um apoio logístico. Assim, grande parte do que é relevante em sociedade está normatizado pelo direito. Em relação àquilo que não está normatizado, o próprio direito indica essas fontes pelas quais essas outras situações vão poder ter uma solução razoável dentro dos casos concretos. O que esse quadro tem a ver com a história das políticas públicas? A proposta que a República Federativa do Brasil tem, em termos de gerenciamento do bem comum, pode ser resumida da seguinte maneira: nós tivemos até hoje uma democracia do tipo representativo. A Constituição diz que o poder emana do povo e em seu nome é exercido. Mas como o povo não pode estar diretamente presente, elege representantes. Os mandatários dos verdadeiros detentores do poder fazem as escolhas políticas em nome do povo. Eles vão normatizando as situações relevantes que vão encontrando e modificando o que já estava normatizado. Mas nunca esses representantes do povo, que formam essa democracia representativa, vão conseguir realmente identificar todas as situações relevantes que acontecem na sociedade. Da Constituição de 1988 para cá, está instaurada aqui uma democracia do tipo representativa e participativa. Isso fica evidente a partir da leitura de muitos artigos da Constituição Federal que dizem: Compete ao Estado, com o auxílio da comunidade...", "Compete ao Estado, com o apoio da coletividade...", e assim por diante. É o reconhecimento do Estado brasileiro de que atualmente não há como se pretender que o Estado dê conta do gerenciamento do bem comum se não houver a colaboração da própria coletividade. O fato dos cidadãos terem eleito vereadores, deputados e senadores, não significa que eles podem deixar o gerenciamento do bem comum por conta dos mandatários porque isso não vai dar certo. Aliás, o que a gente vai notando na sociedade confirma que as iniciativas que mais dão certo são aquelas que decorrem de parcerias entre o Estado e a comunidade, ou entre órgãos do Estado e órgãos particulares. Este evento aqui hoje é uma prova disso. Nós temos um órgão público, o Ministério Público, e temos um setor importante ligado à parte registrária do país. Quando se consegue fazer coisas com sucesso e de uma maneira mais rápida é sempre através de parceria. Quando o Constituinte estabelece a maneira pela qual a República Federativa do Brasil deve funcionar, ele não tem condição de descer a muitos detalhes. A Constituição brasileira já é criticada por ser muito analítica. Para que a Constituição não seja ainda mais analítica, o Constituinte, em muitas situações, foi indicando diretrizes, foi fixando princípios, foi colocando normas que na doutrina jurídica são chamadas de normas programáticas. Essas normas programáticas consistem em certas indicações que servem como um rumo para depois aquilo ser detalhado, especificado e concretizado pelo legislador ordinário. Exemplo: o Constituinte entendeu que a tutela de criança e adolescente é algo prioritário e colocou na Constituição que "o Estado zelará prioritariamente pela tutela de criança e adolescente". Não há como descer a detalhes por ser uma Constituição Federal. Mas o legislador ordinário, através do Estatuto da Criança e do Adolescente, que é uma lei ordinária federal, detalha aquilo e especifica, escreve as condutas e coloca as sanções. O mesmo se dá em relação à política que diz respeito à tutela dos idosos ou à proteção dos deficientes físicos, tutela do erário público etc. A expressão "política pública" está, a meu ver, bastante relacionada com essa dificuldade que referi de início. A ordem normativa, principalmente a ordem constitucional não tem como abranger de maneira absolutamente normatizada todas essas circunstâncias relevantes. São indicados certos fatos que o Constituinte realmente encontrou na sociedade e entende que são importantes. E, a partir daí, o legislador ordinário vai colocando os meios através dos quais, nos casos concretos, aqueles valores e interesses importantes podem vir a ser tutelados."
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
1448
Idioma
pt_BR