Notícia n. 1446 - Boletim Eletrônico IRIB / Março de 2000 / Nº 174 - 02/03/20
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
174
Date
2000Período
Março
Description
Dr. Ricardo Henry Marques Dip: "só a Verdade nos retificará". - (...) "Retificar o registro é torná-lo reto, é ordená-lo a um fim. Mas que fim se busca mediante a retificação do registro? Por certo um bem - e, se se trata de um registro jurídico -, de um bem jurídico. Ora, os bens jurídicos assim se constituem por uma de duas razões fundamentais: ou pela natureza das coisas - e aqui se abre o amplo campo da lei natural e do direito natural (direito natural que é uma coisa, é res, a res justa, a coisa justa, ela mesma, não regra alguma a seu respeito) - ou por uma determinação pública (lei humana não meramente declarativa da lei natural) ou convenção privada (um acordo de vontades). (...) É certo que ainda a lei humana determinativa deve guardar respeito à natureza das coisas, e mais ainda que, uma vez instituído o registro público, há certo gênero de coisas que nele ou por ele não se constituem, porque, antes, foram coisas que lhe ensejaram a constituição. O que significa dizer que há princípios pressupostos no registro, que o antecedem e não são criação legislativa. Uma vez que esses princípios sejam reconhecidos e atuados, a instituição existe como tal. Um exemplo: um registro público não pode ser sigiloso, nem pode deixar de registrar: algo assim que seja um "arquivo privado e secreto" pode decerto existir - cada um de nós tem alguma espécie desse arquivo em casa - e não falta que alguém o designe ou queira designar por "registro público", mas isto não o será, porque não é registro e não é público. E pouco importa que o Estado o denomine registro público: não o será, ressalvada uma revolução verbal ou anarquia terminológica. O problema não se soluciona por meio de uma fala superior ou inferior, mas, objetivamente, pela coisa mesma. (...) Mas a ocupação com a forma não é o mesmo que formularismo. O registro atualiza uma existência - suposta a matéria a formalizar - ou, quando menos, representa o já existente fora e antes da inscrição. Numa ou noutra dessas situações - formalização e representação -, a forma se aprecia numa perspectiva existencial e não ao modo de uma forma hipostasiada centrável em si própria. Em alguns casos, a coisa jurídica não existe antes da inscrição: à matéria, causa ou título inere uma forma, que é o próprio registro, e só a partir dessa inscrição constitutiva e em razão dela é que a coisa adquire existência jurídica: forma-a o registro, aplicando-se a uma causa antecedente. Atualiza uma potência. Noutros supostos, é bem verdade, o registro não opera como forma, senão que se acrescenta, à maneira de um acidente, para conferir certos predicados, p.ex., o de disponibilidade nas inscrições declarativas, ou o de simples difusão com efeitos provativos, nas de mera notícia. Sempre, nessas duas situações, contudo, há uma coisa jurídica a estimar pelo registro, seja para constituí-la, seja para declará-la ou notíciá-la, de tal modo que essa coisa limita a expressão do registro. É seu critério, é seu sinal discriminador. Um critério, ao que se percebe, tanto dirigido ao plano epistêmico - a busca de um dado objeto de conceito -, quanto ao plano da expressão, porque, inevitavelmente, exige um logos externo, i.e., a palavra exterior. (...) A retificação do registro, prossegue-se, não se acha limitada a ser mera notícia ou denúncia de inexatidões registrárias. Não lhe basta advertir o lapso compreensivo, expressivo ou procedimental, mas se exige dela tornar reto ou ordenar o registro, emendando o erro - o que ora é mera extirpação de dados (retificação negativa: o cancelamento simples), ora é aditamento de indicações (retificação positiva), ora um e outra coisa (retificação mista). Tanto a inexatidão - que se diz lato sensu, por aqui englobar, numa simplificação cômoda de linguagem, a discordância registral (dissonância superveniente ao registro) e o erro registrário (lapso da atividade própria do registrador), sendo a inexatidão em sentido estrito o equívoco proveniente do título inscritível -, repete-se: tanto a inexatidão lato sensu, quanto sua retificação, são relacionáveis à idéia de verdade. Se bem que o escopo de veracidade - ou acaso melhor: de verificação - seja registrariamente limitado ao plano da forma e ao fim da segurança jurídica, é certo que o registro está voltado a formalizar ou a representar a verdade das coisas: a verdade é o critério das retificações registrais. (...) A lei brasileira, a esse propósito, é muito gráfica: o art. 860 do Cód. Civ. prevê que cabe ao prejudicado reclamar a retificação do registro, se este último "não exprimir a verdade". É o que rediz o art. 212 da vigente Lei brasileira de Registros Públicos (Lei 6.015/73): "Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o prejudicado reclamar uma retificação...". E o art. 213 dessa última Lei mencionada reza que "poderá ser retificado o erro constante do registro". (...) (...) A segunda projetada observação diz respeito ao relacionamento entre a retificação registral - cujo critério é a verdade - e a legitimação tabular. Admitir a fé pública registral stricto sensu ou a legitimação registrária é um problema decisivamente normativo, ainda que influído da tradição. No direito brasileiro vigente, propende a doutrina - de modo estendido - a sufragar o entendimento de que se adotou o princípio da legitimação registral (arts. 859 e 860, Cód.Civ., e art. 252, Lei n. 6.015/73). Significa dizer que o assento registrário se presume integral (aspecto negativo) e exato (aspecto positivo). É presumidamente integral, porque não omite nenhum dado que nele deveria obrigatoriamente constar e é presumidamente exato, porque nele nada se enuncia em dissonância com a realidade. A só previsão da possibilidade retificadora do registro conduz a cogitar do ataque à presunção de sua integralidade e exatidão. E aqui se põe um tema interessante, porque a presunção relativa que pareceria anunciar-se como condicional no caput do art. 860, Cód. Civ. brasileiro, de conseguinte induziria à admissão simplex da prova em contrário do enunciado registral. Se, entretanto, se conjugam as previsões dos arts. 533 e 860, par. ún., do mesmo Código, verifica-se que o sistema brasileiro adotou uma presunção registral intermédia de integralidade e exatidão. Intermédia entre a fé pública e a mera presunção condicional intermédia, porque admite a prova em contrário ao enunciado tabular, mas resguarda o efeito dessa prova a um certo modo, qual o do cancelamento do registro. É o que se lê também no art. 252 da Lei n. 6.015/73: "O registro, enquanto não cancelado, produz todos os seus efeitos legais, ainda que por, outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido". A essa restrição modal do ataque à presunção registrária ou, em outros termos, a essa limitação da consideração jurídico-registral da verdade concorre um outro limite epistêmico: a decisão registrária ambienta-se em seu mundo, de maneira similar ao que ocorre com o juiz que, enquanto tal, somente aprecia e decide o que se encontra nos autos - quod non est in acta, non est in mundo. Ao registrador, enquanto tal, se oferece o limitado mundo tabular, ainda que também habitado por títulos pendentes de inscrição: quod non est in tabula et in instrumenta, non est in mundo. Casos há em que o registrador e alguma vez, com ele ou contra ele, o juiz em função administrativa, se deixam conduzir por uma tendência, muito sedutora, de suplantar obstáculos de forma para ampliar os lindes do mundo registrário. O pretexto, como isto é de uma tópica já conhecida, é o da vaga realização da justiça. Ora é uma verificação de campo - que afiança inexistir rua implantada onde uma prefeitura diz que há, ou que assinala um edifício em construção onde diz o título haver terreno inedificado que se aliena em frações ideais ora ainda é uma inclinação de eqüidade corretiva - o título de um foi prenotado antes do de outro, mas se o último, teme-se, foi ludibriado pelo vendedor, pois que se inverta a ordem da prenotação... Não se percebe que esse senso difuso de justiça informal é a forma de uma injustiça: conduz à administrativização de um campo que é só propício à jurisdição contenciosa, para além de consistir em maltrato da legalidade estrita. (...) 6. Com o cancelamento - que é uma retificação negativa -, dá-se o fato de que, de modo específico, a normativa de regência, no Brasil, admita que sua inscrição se perfaça "a requerimento unânime das partes" (art. 250, II, Lei 6.015) e "a requerimento do interessado, instruído com documento hábil" (art. 250, III, Lei 6.015). Essa previsão de procedimento não judiciário - a que concorre referência ao "cumprimento de decisão judicial transitada em julgado" (art. 250, I, Lei 6.015) -, faz com que o cancelamento registral se torne uma retificação favorecida em relação às demais. É verdade que o caput do art. 213 da Lei 6.015/73 prevê a retificação de erro constante do registro, "a requerimento do interessado", mas, no rigor da letra legal, parece referi-la a um "despacho judicial" (§ 1º, art. 213), salvo o caso de erro evidente, no qual se admite a atuação direta do registrador (id., segunda parte). Dessa maneira, a retificação do registro imobiliário - ressalvado o caso de cancelamento - é comumente judiciária e, de modo excepcional, atribuída ao registrador. Na prática da justiça registral, houve duas linhas de alargamento da hipótese exceptiva: por uma delas, ampliando a esfera do erro evidente pela outra, concedendo a retificação motu proprio que, com rigor, não se acha conformada ao preceito de regência: a norma do § 1º, art. 213, da Lei 6.015/73, não pode compreender-se à margem do caput desse mesmo artigo que inicia com as palavras "a requerimento do interessado, poderá ser retificado, etc". A maior ou menor bitola da atribuição das retificações ao registrador imobiliário deve-se em certa medida ao fortemente controverso tema de sua função jurídica: o registrador é um funcionário público para-hierarquizado da Justiça ou é, diversamente, um profissional do direito - i.e., um jurista que atua, sob própria responsabilidade, com o exercício de um saber prudencial? Da resposta a essa indagação - muito dependente, é verdade, de uma normativa menos movediça, mas ainda mais dependente de uma funda meditação sobre as importantes funções desempenhadas pelo registrador e o relevante papel do sistema registrário para a consecução do bem comum -, da resposta a essa indagação fundamental, repito, muito deverá o futuro de todo o registro predial brasileiro. Aí se engastam relevantes questões, inclusivamente para o tema da retificação: a "justicialização" da prática dos registros comparte o mesmo sentido ideológico de sua "administrativização", e, adivinha-se, a eventual prevalência do formularismo, com prejuízo da dinâmica tabular, também parece ressoar, ao menos em alguma linha, na tomada equivalente de posição sobre a natureza do registro. Para tantas indagações sobre a instituição e a prática registrárias, incluídas algumas questões que permanentemente me assaltam o ânimo - sobretudo a da busca de um caminho confiável para o deslinde casuístico da tensividade entre as exigências do tráfico imobiliário e as da segurança jurídica, conforta-me saber que há um critério bom e bastante para resolver tudo isso: a humilde e persistente e constante procura da Verdade. É que, em todo caso, só a Verdade nos retificará." (a continuação da palestra será publicada no Boletim do IRIB e o texto, revisado pelo autor na Revista de Direito Imobiliário)
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
1446
Idioma
pt_BR