Notícia n. 8572 - Boletim Eletrônico IRIB / Março de 2006 / Nº 2323 - 03/03/2006
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
2323
Date
2006Período
Março
Description
PL 3.057/2000 em discussão O Valor do registro - I Sérgio Jacomino * - Aproveitando o mote da notável obra de Philadelpho Azevedo, cuja reedição o Irib está preparando, gostaríamos de recuperar o vigor das idéias expostas pelo brilhante jurista para enfrentar a lista de problemas técnico-jurídicos do projeto de lei 3.057/2000 (Bispo Wanderval), levantada por Antonio Herman Benjamin, desdobrando, ainda, o elenco de questões principiológicas referidas pelo jurista paulista. Permito-me apresentar argumentos que visam enriquecer o debate, refutando os óbices apresentados no tocante especificamente aos temas registrários da questão, feridos na missiva do ambientalista paulista. Destaco, portanto, apenas dois tópicos – considerando que os demais serão enfrentados pelos especialistas e alguns estão sendo ainda debatidos: a) Registro obrigatório e a oneração financeira dos sujeitos vulneráveis (ou “ultra vulneráveis”) com despesas registrárias; b) “Ônus leonino” de se impor a obrigatoriedade de registro de circunstâncias ou vicissitudes que possam afetar o terceiro adquirente de bens imóveis. O primeiro deles será enfrentado neste documento. O segundo tópico no documento O Valor do registro – II. Oneração financeira de sujeitos vulneráveis A questão parece estar relacionada com o disposto no artigo 68 e parágrafos do projeto. Verbis: Art.68. Os contratos, incluindo o preliminar, devem ser prenotados no Registro de Imóveis no prazo de 180 (cento e oitenta) dias de sua celebração. 1º É do empreendedor a obrigação de promover o registro do contrato, podendo exigir do adquirente o reembolso das despesas, por expressa disposição contratual. 2º Decorrido o prazo previsto no caput, o empreendedor não pode exigir do adquirente do lote ou unidade autônoma o cumprimento de quaisquer das obrigações previstas no contrato antes do seu registro. 3º O contrato preliminar pode ser realizado por instrumento particular e, cumpridas as obrigações estipuladas, qualquer das partes pode exigir a celebração do contrato definitivo. 4º Na cessão de direitos ou na promessa de cessão feita pelo empreendedor não proprietário, cumpridas as obrigações pelo adquirente, não pode o proprietário recusar-se a outorgar o contrato definitivo de transferência da propriedade. 5º No caso de contrato preliminar formalizado por instrumento público registrado, a transmissão da propriedade deve ser registrada mediante a apresentação da quitação do preço e do comprovante de pagamento do imposto de transmissão. 6º A prova da quitação será dispensada se já decorrido o prazo de prescrição para a cobrança da última parcela, a contar da data de seu vencimento, desde que apresentada certidão forense comprovando a inexistência de ação de rescisão contratual ou de cobrança em face do promitente comprador. 7º O disposto no § 6º também se aplica aos contratos formalizados por instrumentos particulares antes da vigência desta Lei e levados a registro, desde que apresentada ata notarial que constate a impossibilidade de localização do titular do domínio do imóvel ou sua recusa em outorgar escritura pública de venda e compra. A inovação reside justamente na obrigação imposta ao parcelador de providenciar o registro dos contratos no prazo de 180 dias, sob pena de não poder “exigir do adquirente do lote ou unidade autônoma o cumprimento de quaisquer das obrigações previstas no contrato antes do seu registro”. A proposta concretiza as sugestões colhidas pelo Irib nas inúmeras audiências públicas envolvendo os vários setores da sociedade – aqui, destacadamente, o setor do crédito imobiliário, que sofre as duras conseqüências de um progressivo fenômeno de clandestinidade dos negócios jurídicos envolvendo bens imóveis. Depois, procuramos resgatar os fundamentos que inspiraram a criação do registro de imóveis no Brasil. Especificamente, neste dispositivo, buscamos radicar as propostas a fim de captar o sentido do corpo legislativo, buscando o desenvolvimento coerente e sistemático da própria Lei de Parcelamento do Solo, desde o advento do decreto-lei 58, de 1937, até a vigente lei 6.766/79, com todas as alterações que ao longo dos anos ela sofreu. Não custa lembrar que as iniciativas legislativas têm apontado para esse rumo, buscando mitigar os efeitos negativos da clandestinidade negocial. Para ficarmos num exemplo recente, a lei 10.931/2004, consolidando o patrimônio de afetação, buscou diminuir, com mecanismos de auditagem dos empreendimentos imobiliários financiados, a opacidade das transações imobiliárias – vale dizer, da informalidade que lamentavelmente campeia neste país. Clara indicação é a redação dada ao parágrafo 11 do artigo 31-A da lei 4.591/64: “nas incorporações objeto de financiamento, a comercialização das unidades deverá contar com a anuência da instituição financiadora ou deverá ser a ela cientificada, conforme vier a ser estabelecido no contrato de financiamento”. Mas como realizar efetivamente esse controle? Qual a sanção para a omissão dessas informações? Malgrado o disposto no artigo 10 e seguintes da lei 9.613, de 3 de março de 1998, por exemplo, veremos que o problema da prática ilícita de lavagem de dinheiro, utilizando-se dos contratos imobiliários, não vem apresentando os resultados esperados com a edição da legislação mencionada. Como emprestar a maior transparência possível às transações imobiliárias – sem onerar e encarecer todo o processo produtivo desses bens? Responde-se: com iniciativas como essa, de impulsionar o registro obrigatório. É preciso reconhecer que essa proposta colhe, aprofunda e dá seguimento à clara tendência de sancionar o descumprimento da regra insculpida há décadas na lei de registros públicos – nomeadamente o artigo 169 da atual lei 6.015/73, que dá a nota de obrigatoriedade do registro – penalizando a inércia dos contratantes ou interessados. Mas não só na Lei de Registros Públicos. O decreto-lei 58, de 10 de dezembro de 1937, previa regra muito semelhante à que se busca consagrar no corpo legislativo. O artigo 23 do regulamento de 1937 era do seguinte teor: “Nenhuma ação ou defesa se admitirá, fundada nos dispositivos desta lei, sem apresentação de documento comprobatório do registro por ela instituído”. Acerca do dispositivo, comenta Waldemar Ferreira: “Fugiu o decreto-lei de estabelecer penalidade aos infratores ou inobservantes de seus dispositivos. Instituiu um sistema especial de registro para os compromissos de compra e venda de lotes de terras e terrenos, mediante o pagamento de seu preço em prestações. Obrigou os loteadores a fazerem o depósito dos memoriais e planos de loteamento e da planta da propriedade loteada. Tornou obrigatória a inscrição daqueles documentos no livro de registro, a que se referiu. Bem assim, ficaram obrigadas as partes contratantes a proceder à averbação, naquele mesmo registro, das escrituras de compromisso de compra e venda dos lotes. Concedeu-lhes vantagens indiscutíveis e prerrogativas de valia imensa. Mas para os que se submeterem ao seu regime. Nesse firme desiderato, erigiu a norma de nenhuma ação ser admitida, nem defesa alguma, fundada nos seus dispositivos, sem apresentação de documentos comprobatórios do registro por ela instituído. Decorrem desse princípio estas conseqüências: (a) a petição inicial de ação ou processo fundado em dispositivo do decreto-lei, deve ser, necessariamente, acompanhada do documento comprobatório do registro especial por ele instituído, sob pena de indeferimento. Essa é preliminar, que o juiz deve examinar, por iniciativa própria, desde logo; (b) a contestação ou embargos não devem ser recebidos, pelo juiz, desde que não instruídos com a prova do registro especial”. (Ferreira, Waldemar Martins. O loteamento e a venda de terrenos em prestações. T. I, São Paulo: RT, 1938, p. 249-250). A própria lei 6.766/79, que ora cuidamos de reformar, no seu artigo 50, parágrafo único, incisos I e II, tipifica como crime a contratação sem o prévio registro do parcelamento ou com inexistência de título legítimo de propriedade do imóvel parcelando. Aqui a obrigatoriedade do registro já vem sancionada penalmente. A tendência das leis de parcelamento do solo urbano se aprofundou com a clara sinalização dada pela lei 4.591, de 1964, cujos artigos 64, 65 e 66 prevêem a sanção pelo não-registro. É tão grande o escrúpulo da lei de condomínios e incorporação no que se refere à necessidade do registro que chega até mesmo a prever sanção econômica contra o jornal ou qualquer outro veículo que publique informações sobre empreendimentos de incorporação imobiliária sem indicação do registro respectivo no ofício imobiliário (art. 64 da lei 4591/64)... O que já se achava previsto no decreto-lei 58, de 1937, em seu artigo 10. Ora, por que haveremos de levantar barreiras à consolidação da efetiva tutela dos consumidores e de todos os agentes envolvidos no crédito imobiliário? A pergunta essencial é: por que a publicidade registral é importante para o desenvolvimento econômico e social do país? Essa importância justifica a criação de mecanismos que agravem o ônus já existente pelo não-registro? As vantagens sociais sobrepujam eventual custo inicial com o registro? A razão da iniciativa é bastante clara e simples – e ela parece ter sido posta a salvo, afortunadamente, pelo crítico, que acomodou suas observações exclusivamente nos custos inerentes ao registro. A crítica não adentrou aspectos relativos à segurança jurídica e ao custo social de contratos fragilizados, que eventualmente não sejam honrados pelo parcelador e cujo custo social é, afinal, pago por toda a coletividade – um verdadeiro desperdício de recursos pela movimentação de toda a máquina estatal. A aceleração das transações imobiliárias, ocorrida, mormente, a partir do final da década de 1950 – pari passu com a crescente urbanização do país – está a impor mecanismos de publicidade que tornem essas transações robustecidas pela informação segura, obtida de maneira rápida, eficiente e barata. Realmente, não há qualquer razão jurídica ou legal, e nem mesmo política, para guerrear a iniciativa de se obrigar a contratação privada à plena transparência dos negócios jurídico-reais. Nem mesmo do ponto de vista da ultra vulnerabilidade dos consumidores em face dos custos inerentes ao registro. Busca-se, com essa medida: •Combater a informalidade e todos os problemas dela derivados – como a opacidade nas transações jurídico-imobiliárias, até mesmo por interpostas pessoas – os chamados laranjas. •Diminuir os custos transacionais envolvidos no mercado de intercâmbios; •Proporcionar à administração pública, incluindo o fisco, conhecimento pleno das transações ocorridas. •Propiciar dados confiáveis aos cadastros multifinalitários (dados urbanísticos, rurais, tributários, econômicos, ambientais etc.). •Consolidar o direito real na pessoa do consumidor dos imóveis – todo e qualquer cidadão que adquira bens imóveis no mercado, como os prestamistas, adquirentes de unidades autônomas em incorporação imobiliária, loteamentos etc. – fazendo a blindagem jurídica de sua situação jurídica. •Dinamizar o mercado de compra e venda de imóveis, fazendo surgir novas e mais baratas oportunidades. •Permitir a transformação do patrimônio imobilizado em ativo que favoreça a obtenção do crédito. •Facilitar a cessão de direitos e transferência do lote a terceiros diretamente pelo adquirente. •Impedir que loteadores inescrupulosos venham a compromissar com terceiros o mesmo lote. Enfim, há uma pletora de efeitos positivos alcançados com o registro e que se constituem em boas e suficientes razões para se fortalecer a obrigatoriedade do registro como proposta no projeto de lei em comento. Transparência pela publicidade efetiva A cognoscibilidade, de um lado, e, de outro, o efetivo conhecimento, por parte do Estado (fisco, cadastros municipais, autoridades ambientais, urbanísticas, etc.), de fatos e situações jurídicos relacionados com os bens imóveis, são fatores que fazem do registro o instrumento que proporciona o mais completo, eficaz e amplo conhecimento social das transações e situações jurídico-imobiliárias. Mas por qual razão se registra? Qual o fundamento jurídico e legal para o registro obrigatório? Quais as vantagens sociais que o registro garante? Por que razão o registro de direitos é reconhecidamente um instrumento de desenvolvimento socioeconômico? Por que a transparência dos negócios consulta ao interesse público? Essas questões permeiam a discussão sobre a obrigatoriedade do registro. Por que se registra? Qual o fundamento legal e jurídico para a obrigatoriedade? Em primeiríssimo e indisputado lugar, porque o registro, no Brasil, é constitutivo do direito real– artigos 1.227, 1.245, 1.417 do Código Civil: Art. 1.227. Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos entre vivos, só se adquirem com o registro no Cartório de Registro de Imóveis dos referidos títulos (arts. 1.245 a 1.247), salvo os casos expressos neste Código. Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. Art. 1.417. Mediante promessa de compra e venda, em que se não pactuou arrependimento, celebrada por instrumento público ou particular, e registrada no Cartório de Registro de Imóveis, adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel. Vale a pena rememorar conceitos básicos de direitos reais. Diz García García que “o direito real apresenta as notas de imediatividade e absolutividade. Esta última se refere à eficácia erga omnes do direito real em relação a terceiros. Pois bem. Dificilmente se poderia cogitar de eficácia erga omnes, isto é, da absolutividade, se não existisse a cognoscibilidade, isto é, a possibilidade de conhecer os direitos e situações jurídico-reais através de um meio técnico, seguro e preciso de publicidade como é o Registro de Imóveis. O registro dota, assim, de publicidade, cognoscibilidade, eficácia erga omnes e, portanto, plena absolutividade ao direito real. Não se pode dizer que o direito real está plena e perfeitamente constituído se não dispõe da publicidade inerente à absolutividade. Essa publicidade só é plena e perfeita com o registro no Registro Imobiliário”. (García García, Jose Manuel. Derecho inmobiliario registral o hipotecario. Madri: Civitas, T. II, 1993, p. 64). O valor da publicidade registral é indenegável e sempre foi dessa maneira percebida pela doutrina. “A sua função no Direito consiste em tornar conhecidas certas situações jurídicas, principalmente quando se refletem nos interesses de terceiros”, apontou há muitos anos o tratadista de registros públicos Miguel Maria de Serpa Lopes ( Tratado dos Registros Públicos, 5.ed. São Paulo: Freitas Bastos, 1962, vol. I, p. 18). A razão mais singela que sustenta a necessidade do registro é o fato de que há relações jurídicas que se irradiam para além da esfera estrita das partes e exigem que sejam respeitadas por terceiros, “sendo imperiosa a necessidade da criação de um órgão, de um sistema capaz de possibilitar esse conhecimento erga omnes”. ( Id. Ib.). Ora, é da essência dos direitos reais a necessidade de reconhecimento, e respeito geral por todos, das relações jurídicas que se estabelecem para modular o relacionamento do homem com as coisas. Não por outra razão, o sistema brasileiro, desde o advento do Código Civil de 1916, confere ao registro o efeito constitutivo do direito de propriedade, dos direitos reais limitados e de garantia, condicionando, pelo registro, a transubstanciação em plenos direitos reais. Serpa Lopes assinala com o costumeiro acerto: “a publicidade protege e assegura, através do registo, duas ordens de interesses: o interesse social e o interesse privado. Quando em causa o primeiro, como em muitas relações atinentes ao estado civil, aos direitos reais, o Registo é obrigatoriamente imposto, mediante sanções. Por meio de seus órgãos competentes, o Estado intervém diretamente, assegurando, de um modo mais eficaz e imediato, o interesse coletivo. Se de caráter privado e particular o interesse preponderante, o Registo é, em regra, facultativo, cingindo-se o interesse do Estado ao cumprimento das regras formais pertinentes ao mesmo, como, v.g., no caso de alguém levar a registro um documento simplesmente para garanti-lo contra qualquer perda ou extravio”. ( Id. Ib.). Para que se possa identificar e quadrar claramente na teia normativa brasileira o que o ratadista aponta, na vigente lei de registros públicos, por exemplo, há o registro facultativo, realizado para mera conservação e perpetuidade – registro de títulos e documentos, artigo127, VII – e o registro obrigatório dos títulos elencados no artigo 167, incisos I e II. A obrigatoriedade vem confirmada no artigo 169 da mesma lei: “todos os atos enumerados no art. 167 são obrigatórios”. Pelo registro da promessa de compra e venda adquire o promitente comprador direito real à aquisição do imóvel (art. 1.417 do vigente Código Civil). O registro é obrigatório (art. 169 c.c.art. 167, I, 20). Ora, sendo o registro necessário, para proporcionar a mutação jurídico-real que torna o compromissário comprador titular de direito real e sendo o registro obrigatório, por qual razão jurídica se advogará o não-registro? Walter Ceneviva aponta claramente que o registro é obrigatório e quem não observar esse dever de ordem pública responde pelos prejuízos a que der causa. E junge: “se o registro e a averbação são feitos (art. 172) para constituição, transferência e extinção de direitos, validade em relação a terceiros e garantia de disponibilidade, nenhum efeito pode ser obtido ou reclamado sem que o registro se complete” ( Lei dos Registros Públicos comentada, 16.ed. São Paulo: Saraiva, p. 370). A obrigatoriedade do registro sempre esteve assente no ordenamento pátrio. Basta acenar com a larga trajetória do atual artigo 169 da Lei de Registros Públicos que se filia ao artigo 179 do decreto 4.857, de 1939 e daí se radica até alcançar o decreto 18.542, de 1928, que aprovou o regulamento para execução dos serviços concernentes a registros públicos estabelecidos pelo código de 1916 (art. 234). Logicamente que, a partir de 1916, passando o registro a ser obrigatório, reafirmando a necessidade de entroncamento do trato sucessivo, o regulamento de 1928 dispensará unicamente do registro obrigatório o titulo anterior que não estivesse sujeito ao registro, ”segundo o direito então vigente”. O tratadista Serpa Lopes apontava a natural obrigatoriedade do registro como elemento “substancial à própria relação jurídica em causa”. O não-registro, segundo ele, leva à conseqüência de uma “situação injurídica” ( Op. cit. comentários ao art. 179, p. 311 na 4.ed., vol. IV, 1961). Na verdade, a obrigatoriedade do registro resulta simplesmente de uma opção do legislador, vinda a lume em 1916, quando contemplou o registro com o efeito constitutivo do direito real. Para fazer frente à clandestinidade jurídica, como a existência de títulos volantes e desconhecidos da sociedade, a constitutividade traz ínsita a idéia da obrigatoriedade do registro. Francesco Messineo, discorrendo sobre a publicidade do registro dos títulos de aquisição, etc., analisa o caráter dessa “obrigatoriedade”: visa impedir transferências ocultas da riqueza imobiliária (propriedade imóvel) ou o nascimento de ônus ou gravames ocultos – hipotecas, servidões, enfiteuses, usufruto etc. Não existindo um sistema registral, tais direitos seriam válidos e eficazes – ainda que tais transações fossem ignoradas por terceiros. Mas, continua o autor em tradução livre, “precisamente por isso, tais transferências e ônus ocultos, à larga, paralisariam o comércio (circulação em sentido jurídico; em particular, a possibilidade de que os imóveis possam servir de garantia), em virtude da falta de certeza em que o terceiro adquirente se encontraria em face da condição jurídica de ditos bens (o chamado favor de circulação), em razão dos riscos a que se sujeitariam e ficariam expostos os terceiros sub-adquirentes se os títulos de aquisição não fossem cognoscíveis por eles”. E continua o tratadista italiano (aqui citado apenas porque as razões que inspiraram o nascimento do registro hipotecário no Brasil guardam notável semelhança com as reformas decimonômicas verificadas no continente europeu): “Quem faça manifesta a própria aquisição mediante a publicidade (registro), segundo a finalidade da lei, cuja vontade é, precisamente, que sejam cognoscíveis de todos os deslocamentos e as vicissitudes da riqueza imobiliária, isto é, quer estimular a formação do chamado estado civil’ dos bens imóveis, que é a única maneira de dar a certeza da titularidade e disponibilidade dos direitos imobiliários e que proporciona, além do mais, notícia dos ônus que gravam os imóveis”. (Messineo, Francesco. Manuale di diritto civile e commerciale. Milano: Dott. A. Giufrè, 8.ed., 1952, vol II, parte 1, p. 540-1). Por fim, o mesmo autor registra que essa obrigação é, na verdade, um ônus que se impõe ao interessado. No Brasil, com essa medida, o legislador aniquilava, por assim dizer, as controvérsias acerca da desnecessidade do registro dos títulos judiciais e dos atos de transmissão causa mortis, tão acirradas à época do advento do código de 1916. Jurisprudência Vale a pena deitar uma mirada no entendimento de nossos tribunais acerca do tema. Nem mesmo a jurisprudência atualmente dominante no Superior Tribunal de Justiça – que admite a aposição de embargos de terceiros fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro (Súmula 84, Corte Especial, julgado em 18/6/1993, DOU de 2/7/1993 p. 13.283) – tem a virtude de afastar a necessidade social e econômica do registro. Pelo contrário. Visto de uma particular perspectiva, o posicionamento da jurisprudência dominante, atento às necessidades sociais, flexibiliza o entendimento expresso na Súmula 621 do STF justamente porque campeia a informalidade, elevada à condição de fato social incontornável para a dispensação jurisdicional. Demais, nunca sobeja relembrar, as questões postas à apreciação jurisdicional versam sobre uma disputa de direitos pessoais. Esse o verdadeiro sentido da jurisprudência do STJ, que, “sobrepujando a questão de fundo sobre a questão da forma, como técnica de realização da justiça” – como asseverou o ministro Luiz Fux no Ag. Rg. no Agravo de Instrumento 641.363-RS, e relembrando o voto do ministro Athos Carneiro no célebre voto exarado no REsp.1.172DSP –, aponta para a disputa de dois direitos pessoais – o direito do exeqüente em crédito quirografário e o direito do compromissário comprador. Vale trazer à lembrança os votos que se tornaram paradigmas para decisões ulteriores. Questionava o ministro Athos Carneiro: “entre as duas pretensões, a do credor, direito pessoal, e a do promitente comprador com justa posse, direito também pessoal, qual é aquela que merece maior tutela, maior proteção jurídica?”. E logo responde o ministro com outra pergunta muito pertinente, aliás, no contexto das discussões do PL 3057: “E a penhora, por sua vez, terá ela sido objeto de registro, de molde a ter eficácia perante terceiros? Creio mais conforme com as necessidades atuais do comércio jurídico a interpretação pela qual, no choque de interesses de dois direitos eminentemente pessoais (a própria penhora não é direito real, mas ato processual executivo), direito pessoal tanto um quanto outro, deve prevalecer, na via dos embargos de terceiro, o direito daquele que está na justa e plena posse do imóvel, como seu legítimo pretendente à aquisição, face ao direito do credor do promitente vendedor, dês que no caso ausente, por certo, qualquer modalidade de fraude a credores ou à execução. Esta orientação melhor se coaduna às realidades jurídico-sociais do nosso país, e impende sejamos sensíveis a estas realidades." (RESP 1.172DSP, relator ministro Athos Carneiro, DJ 16D04D90). Como se vê, para essas exceções, tudo se reduz à custosa e demorada produção de provas e o enfrentamento de uma demanda judicial que pode consumir anos e resultar numa frustração executiva. Estamos novamente enredados nos dilemas que consumiam os debates nas vésperas da criação dos modernos sistemas de publicidade imobiliária. Indiscutivelmente, a via jurisdicional, comparada à senda preventiva da prova pré-constituída pelo registro, representa um remédio amargo, pelos custos envolvidos. É muito melhor para todos os interessados, até mesmo para o exeqüente, contar com o apoio do registro para identificar claramente a situação jurídica do imóvel que vai ser objeto de constrição judicial. Enfim, estamos, com o atacar o registro obrigatório, retrogradando aos primórdios dos modernos sistemas de publicidade, ignorando os avanços mundiais obtidos com mecanismos eficientes de publicidade, investindo numa senda que é, seguramente, muito mais custosa, demorada e onerosa para o cidadão. A importância econômica e social da publicidade registral À parte a obrigatoriedade do registro para efeitos constitutivos, há aspectos relevantíssimos que recomendam enfaticamente o registro. A cognoscibilidade – qualidade do que é conhecível – é uma nota essencial do registro brasileiro. A instituição registral oferece a possibilidade efetiva de conhecimento das situações jurídicas relacionadas com os bens imóveis. Essa “potência” de conhecimento é um poderoso instrumento para o desenvolvimento sócio-econômico, pois reduz, comprovadamente, os custos transacionais envolvendo o tráfico jurídico de bens imóveis, combatendo, eficazmente, a clandestinidade e a informalidade. Para que se possa ter uma idéia da importância do tema dos registros de direitos numa sociedade contemporânea, vamos dar voz a Fernando Méndez González, que lançou a seguinte questão: Como se pode conseguir que um property right imobiliário seja “seguro” em um sentido jurídico? Para abordar esta questão” diz ele, “partiremos de um simples exemplo: suponhamos que A adquire de B um imóvel, por meio de um contrato, v.g.: compra e venda. O primeiro e indispensável requisito para que A venha a ser dono é que B o seja. Porém, como pode A saber que B é o verdadeiro dono e que a residência está gravada com os ônus que B lhe manifesta?”. E prossegue: “solucionar essa questão é da maior importância, pois, se não se encontra um acerto institucional para esse desafio que põe a economia de mercado, o hipotético comprador encontraria muitas dificuldades em saber se o vendedor é, realmente, o único e legítimo proprietário, e, em caso de realizar-se a operação de intercâmbio, o adquirente correria o risco de que pudessem aparecer outras pessoas que reivindicassem o direito adquirido. Em tal situação, todos teriam de dedicar muito tempo e esforços em informar-se sobre o estatuto jurídico dos bens que estão interessados em adquirir e em investigar os possíveis ônus aos quais os bens estivessem sujeitos e que o vendedor haveria de ocultar, mediante um comportamento oportunista. Pense-se que um dos problemas principais que se estabelecia na Espanha, assim como em outros paises, anteriormente a 1861, é o denominado crimen stellionatus, quer dizer, a ocultação, ao comprador, pelo vendedor, dos ônus que pesavam sobre o imóvel. As incertezas inerentes a essa situação converter-se-iam em uma fonte de custos pessoais que o comprador teria de levar em conta. Se a soma de todos esses custos é demasiado elevada em relação às futuras utilidades que a operação de compra e venda poderia produzir, tal operação não se celebraria, e os recursos ficariam infra-utilizados, de que segue, como veremos, que o mecanismo que faz com que os recursos se dirijam às atividades mais úteis para a sociedade ficaria bloqueado e a economia e a sociedade seriam menos eficazes. Além disso, temos de levar em conta – e desejo sublinhar a importância deste aspecto da questão – que, em semelhante situação, tampouco o prestamista consideraria a propriedade assim adquirida como uma garantia suficientemente sólida para assegurar seu investimento creditório, pelo que, ou bem não emprestaria, ou bem, como já dizia a Exposição de Motivos da Lei Hipotecaria espanhola de 1861, compensaria essa incerteza com juros exorbitantes. Em definitivo, produzir-se-ia menos, e a sociedade seria menos eficiente”. Uma situação semelhante está longe de ser uma pura ficção. Pode encontrar-se freqüentemente em muitas sociedades do Terceiro Mundo, especialmente na África”. Para alguns autores que têm estudado detidamente este problema, as dificuldades que as sociedades tradicionais parecem encontrar para a integração do conceito europeu de propriedade e a adaptação às suas necessidades das regras dinâmicas da economia de mercado não se devem ao fato de que a própria noção de propriedade privada seja incompatível, por definição, com seus sistemas culturais – como sustentaram em seu momento os teóricos do socialismo africano. Isto se deve, simplesmente, ao caráter rudimentar de seus mecanismos jurídicos, impotentes para defrontar-se eficazmente com os complexos problemas que aparecem no desenvolvimento de uma economia baseada no intercâmbio. Para que a moderna economia de mercado chegasse a adquirir seu atual estado de desenvolvimento, foi necessário que anteriormente se chegasse a acumular uma experiência jurídica e cultural muito importante. E é precisamente esta experiência que falta, ainda, aos países que encontram dificuldades em seu caminho de transição para uma economia de mercado”. E conclui: “tratando-se de direitos reais sobre bens imóveis, todos os ajustes institucionais conhecidos são, em maior ou menor medida, registrais”. (Méndez González, Fernando P. Aponta o economista Benito Arruñada que os intercâmbios econômicos na sociedade apresentam um caráter custoso que constitui, seguramente, o freio mais fundamental para a especialização e, conseqüentemente, para o desenvolvimento econômico. Diz que, para se reduzir os custos de intercâmbio, empregam-se numerosos mecanismos. “Entre eles destacam-se as instituições jurídicas, que tornam possível a existência e a contratação de direitos da propriedade sobre os bens imóveis. A função dessas instituições – fundamentalmente, o direito imobiliário e o registro – é a de proteger os direitos de propriedade e reduzir as assimetrias informativas entre os protagonistas dos intercâmbios”. (Arruñada, Benito. Organização do registro da propriedade em países em desenvolvimento in RDI 56 - jan.-jun. de 2004). Logicamente, quando se fala em direitos de propriedade, se fala por metonímia, buscando abranger todos os demais direitos derivados – especialmente, no contexto de nossas discussões, dos direitos à aquisição (direitos reais de compromisso de compra e venda e cessão), direitos como concessão de uso, direitos de garantia, como a hipoteca e a anticrese, etc. A certeza do direito constitui um princípio jurídico básico e constitutivo de todas as relações sociais, ”mormente das que exigem maior crédito, segurança, concórdia e consistência”, nas palavras de José Augusto Guimarães Mouteira Guerreiro ( O registro como instrumento de proteção das garantias jurídicas – Do aproveitamento econômico das coisas in RDI 55 - jul.-dez. de 2003). Prossegue o autor português: “nesse sentido, cabe notar que, nas sociedades contemporâneas, em que a insegurança das relações faz vacilar a generalidade dos cidadãos, das empresas e dos próprios governos, é sentida com crescente intensidade a exigência da certeza do direito como alicerce que possa permitir consolidar, harmonizar e pacificar toda a coletividade. Sendo esta uma constatação genérica, é indubitável que, neste âmbito da certeza jurídica, existem diversos graus de exigibilidade e de carência, mas notório é também que a múltipla circulação dos bens, aliada à diversidade de formas pelas quais podem constantemente ser transacionados e sobre eles constituídos novos e complexos direitos, torna forçoso que se desenvolvam os mecanismos aptos (vocacionados) para garantir tais transações”. Quais seriam esses mecanismos? Averba o jurista: “o conhecimento exato, determinado e publicamente oponível da situação jurídica dos bens é suposto e pressuposto da própria tutela da confiança e da certeza do direito”. E conclui: “Sendo o registro a instituição ao serviço do público, estruturada e indicada para organizar e publicitar os direitos – as titularidades – dos imóveis (e dos móveis se dele forem passíveis) por meio da inserção dos fatos que geram tais direitos e a graduá-los eficaz e prioritariamente, tem, por definição e efeito próprio, a segurança e garantia jurídicas, nomeadamente no que concerne às transações imobiliárias, como objetivo essencial”. Segurança, previsibilidade, transparência, controle social, são palavras que revelam as f
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
8572
Idioma
pt_BR