Notícia n. 6145 - Boletim Eletrônico IRIB / Julho de 2004 / Nº 1179 - 02/07/2004
Tipo de publicação
Notícia
Coleções
Edição
1179
Date
2004Período
Julho
Description
Imóvel rural – Lei 10.267/2001 - Memorial descritivo georreferenciado e o registro de imóveis - José Ribeiro * José Ribeiro é juiz de Direito aposentado. Ex-juiz federal. Professor de Direito. Mestre em Direito. Advogado. Consultor Jurídico da ANOREG-PR.* - Alguns registradores de imóveis têm tido dúvida quanto ao correto procedimento com relação à prática de ato de seu ofício ao ser apresentado, em seu serviço registral, memorial georreferenciado referente a imóvel rural, sobretudo porque a configuração do imóvel, nesse memorial, discrepa da que está consignada na respectiva matrícula imobiliária. Isso tem ocorrido com certa freqüência por ocasião da averbação do Termo de Compromisso firmado perante o Instituto Ambiental do Paraná (IAP), que tem exigido, para consignar a caracterização do imóvel objeto de reserva florestal, que o proprietário apresente memorial georreferenciado. A aceitação desse memorial pelo registrador de imóveis, para lançar a caracterização do imóvel na respectiva matrícula, merece reflexão em face das normas legais que regulamentaram esse assunto. Para essa reflexão serão tecidas, em seguida, algumas considerações, com o intuito apenas de contribuir para o correto procedimento registral. O artigo 176 da vigente Lei dos Registros Públicos, 6.015/73, em decorrência do artigo terceiro da lei 10.267/01, passou a ter os seus parágrafos terceiro e quarto com a seguinte redação: “§ 3° Nos casos de desmembramento, parcelamento ou remembramento de imóveis rurais, a identificação prevista na alínea “a” do item 3 do inciso II do § 1° será obtida a partir de memorial descritivo, assinado por profissional habilitado e com a devida Anotação de Responsabilidade Técnica – ART, contendo as coordenadas dos vértices definidores dos limites dos imóveis rurais, geo-referenciadas ao Sistema Geodésico Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo INCRA, garantida a isenção de custos financeiros aos proprietários de imóveis rurais cuja somatória da área não exceda a quatro módulos fiscais. § 4° A identificação de que trata o § 3° tornar-se-á obrigatória para efetivação de registro, em qualquer situação de transferência de imóvel rural, nos prazos fixados por ato do Poder Executivo”. (grifou-se) Para regulamentar essa lei 10.267/01 foi publicado o decreto 4.449/02, o qual fixou os prazos para a identificação dos imóveis rurais nos termos do parágrafo quarto supra transcrito, e estabeleceu, no seu artigo nono, parágrafos quinto, sexto e oitavo, o seguinte: “§ 5° O memorial descritivo, que de qualquer modo possa alterar o registro, será averbado no serviço de registro de imóveis competente mediante requerimento do interessado, contendo declaração firmada sob pena de responsabilidade civil e criminal, com firma reconhecida, de que não houve alteração das divisas do imóvel registrado e de que foram respeitados os direitos dos confrontantes, acompanhado da certificação prevista no § 1° deste artigo, do CCIR e da prova de quitação do ITR dos últimos cinco exercícios, quando for o caso. § 6° A documentação prevista no § 5° deverá ser acompanhada de declaração expressa dos confinantes de que os limites divisórios foram respeitados, com suas respectivas firmas reconhecidas. § 8° Não sendo apresentadas as declarações constantes no § 6° e a certidão prevista no § 1°, o oficial encaminhará a documentação ao juiz de direito competente, para que a retificação seja processada nos termos do art. 213 da Lei n° 6.015, de 1973”. (grifou-se). Como se pode observar, o citado decreto 4.449/02 prevê a possibilidade de retificação do registro (ou da matrícula), independentemente de despacho judicial, desde que seja apresentada declaração firmada pelo proprietário, sob pena de responsabilidade, com firma reconhecida, de que não houve alteração das divisas do imóvel, e declaração também dos confrontantes, com firma reconhecida, só devendo o registrador encaminhar a documentação ao juízo competente, para a retificação, se tais declarações (a do proprietário e a dos confrontantes) não forem apresentadas. Nesse ponto o mencionado decreto extrapolou a lei a que está regulamentando. Em nenhum momento a lei regulamentada (10.267/01) prevê a retificação de registro ou de matrícula do imóvel. Além disso, o aludido decreto está contrariando a Lei dos Registros Públicos, a qual, excetuado o caso de erro evidente (aquele resultante de erro/equívoco do registrador na tomada de nota de elementos contidos no título registrado, conforme entendimento doutrinário-jurisprudencial), que pode ser corrigido pelo oficial, desde logo, com a devida cautela (art. 213, § 1°), só admite a retificação mediante despacho/decisão judicial (arts. 212 e 213), ainda assim após ouvir o Ministério Público. E se da retificação resultar alteração da descrição das divisas ou da área do imóvel, serão citados, para se manifestar sobre o requerimento, em dez dias, todos os confrontantes e o alienante ou seus sucessores, dispensada a citação destes últimos se a data da transcrição ou da matrícula remontar a mais de vinte anos (art. 213, § 2°). Na lição dos doutos, o decreto, como ato administrativo, está sempre em situação inferior à da lei, e, por isso, não a pode contrariar [[1] HELY LOPES MEIRELLES, Direito Administrativo Brasileiro, 2ª edição revista e ampliada, Editora Revista dos Tribunais, 1966, p. 186/187.1]. Daí que não se confunde o regulamento com a lei, de modo algum podendo aquele ultrapassar os limites a esta conferidos. Se o regulamento se afasta da lei, é inconstitucional jamais podendo, portanto, ser exercido contra legem. Desenvolve-se, isso sim, de acordo com os princípios legais, dentro da lei, visto que a norma jurídica o limita e o condiciona. Por isso, na hierarquia das normas, representam os regulamentos o grau mais alto na esfera administrativa, logo abaixo das normas legais, sendo a complementação destas. Pelo sistema constitucional brasileiro, os regulamentos são aprovados por decreto executivo e a sua amplitude só encontra limites nos textos legais regulamentados. [[2] JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, Curso de Direito Administrativo, Forense, 3ª edição, revista, ampliada, 3ª edição, 1971, p. 202.2] Assim, não se pode aceitar o memorial descritivo, para averbação, com base no referido decreto 4.449/02, ainda que com a apresentação das declarações do proprietário e dos confrontantes, previstas no parágrafo quinto do seu artigo nono, não só porque contraria o procedimento retificatório estatuído na lei de regência (Lei dos Registros Públicos), mas também porque, na prática, fica difícil, senão impossível, ao registrador de imóveis saber quais são, realmente, todos os confrontantes atuais do imóvel, sobretudo nos casos de área de extensão considerável. Ademais, não fica afastada a possibilidade de o proprietário, em tese, omitir nomes de alguns confrontantes, ou nomes de sucessores de confrontantes antigos, e isso tornará inseguro o ato averbatório lançado pelo registrador, porque pode não representar a real situação da caracterização do imóvel, uma vez que é possível estar-se invadindo divisas de confrontantes que eventualmente tenham sido omitidos, voluntariamente ou não, na declaração de confrontantes. Além disso, não há previsão, no decreto, para colher-se a concordância do alienante ou de seus sucessores, e nem ouvir-se o Ministério Público, nos termos dos parágrafos segundo e terceiro do artigo 213 da Lei dos Registros Públicos. É preciso ter em conta, ainda, que simples suprimento de omissões existentes em registro ou matrícula do imóvel, no tocante às metragens ou áreas dos imóveis, que é muito comum, por sinal, especialmente aqui no Estado do Paraná, implica retificação de um ou de outra. É que o termo “retificação” – que significa tornar reto, corrigir o que está errado, corrige ou emenda os erros, os equívocos, os enganos, o que não se mostra certo ou exato – [[3] DE PLÁCIDO E SILVA, Vocabulário Jurídico, 16ª edição).3] tem sido interpretado, atualmente, de forma ampliativa, no tocante ao registro imobiliário. Assim, a retificação de registro, hoje, abrange também a hipótese de mera complementação do registro, ou da matrícula, a fim de consignar naquele ou nesta as medidas faltantes do imóvel. Ou seja, não é preciso haver uma discrepância entre um dado caracterizador do imóvel, constante de assento registral, com a situação fática do mesmo imóvel, para haver retificação. A simples omissão desse mesmo dado, no fólio real, já enseja processo retificatório para supri-la ou para complementar o ato registral. Como bem esclareceu Ulysses da Silva [[4] ULYSSES DA SILVA, in "A Caminhada de um Título - da Recepção ao Ato Final", publicado na Revista de Direito Imobiliário, IRIB, n° 45, ano 21, setembro-dezembro de 1998, p. 73.4], ”A expressão retificação, convém observar, é usada em sentido amplo. Ela tanto pode alcançar alteração de elementos descritivos do imóvel, como área de superfície e medidas lineares, como pode restringir-se a simples inserção de requisitos omitidos. Correto, portanto, o emprego do termo porque em ambos os casos corrige-se o assento registrário e o fundamento encontra-se no art. 213, da Lei 6.015/73”. No sentido de ser impossível a retificação de registro/matrícula, suprindo omissões neles contidas, no tocante à caracterização do imóvel, sem a observância de procedimento judicial, já se manifestou a jurisprudência. Com efeito, em recurso provido pelo Exmo. Sr. Corregedor Geral da Justiça do Estado de São Paulo (Proc. n° 169/2003 – 86/2003-E), decisão de 25/03/03, ficou assentado: “(...) 2. Ausente na origem indicação de medida perimetral e área de superfície, sobretudo quando de imóvel desmembrado, sem haver dado tabular a indicar formato geodésico regular da unidade, a retificação judicial é de rigor, com citação dos confrontantes (art. 213, parágrafo 1°, da Lei 6.015/73) (...)”. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo decidiu: “REGISTRO IMOBILIÁRIO – RETIFICAÇÃO – TRANSCRIÇÃO ANTERIOR INCOMPLETA, NA QUAL NÃO CONSTA A ÁREA TOTAL DO IMÓVEL – PRETENDIDA ABERTURA DE MATRÍCULA COM A INSERÇÃO DE DADOS NOVOS – DESCABIMENTO – NECESSIDADE DE PRÉVIA RETIFICAÇÃO DO TÍTULO. Não se deve permitir a inserção, de forma unilateral e sem o procedimento adequado, de dados novos na matrícula a ser aberta, principalmente no que concerne a características e área do imóvel” (Ap. Cív. 3.691-0 – São Sebastião – TJSP, in JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA, n° 182, p. 183). O Tribunal de Justiça do nosso Estado, ao conhecer da Apelação Cível n° 60.821-7, sob a relatoria do eminente Des. Fleury Fernandes, decidiu, por sua 5ª Câmara Cível, em 30/12/97, que “Tratando-se de escritura e registro antigos onde o imóvel é identificado apenas pela área e local aproximado, inadmite-se o registro de escritura pela qual são supridos todos os dados faltantes, com base em unilateral levantamento topográfico, ante a probabilidade do ferimento do direito de terceiros, ainda mais quando as circunstâncias do caso concreto indicarem a presença no imóvel registrando de proprietários titulares além de posseiros, certo que o interessado não detém a posse de qualquer parcela da área registranda”. Na fundamentação do respectivo acórdão está expresso: “A fixação de linhas, pontos, metragens e ângulos tão minuciosos, quanto o são os decorrentes de levantamento topográficos alberga a possibilidade de prejuízo aos confrontantes se tais elementos não constam do registro anterior. O unilateral posicionamento físico desenhado pode não corresponder à figuração originária, determinada pelos elementos individuantes da matrícula, donde a gravabilidade teórica de terceiros diante da possibilidade de deslocamento de linhas, deformação da figura geométrica e invasão de propriedades lindeiras (AC 281.232/SP – 29/06/79 – Rel. Des. Andrade Junqueira)”. Assim, não podendo simples decreto extrapolar a lei a que regulamenta e nem sobrepor-se a qualquer lei federal, em razão do princípio da hierarquia das normas adotado pelo ordenamento jurídico pátrio, resta então, como conclusão, que qualquer pedido de averbação de caracterização de imóvel rural, constante de memorial descritivo georreferenciado, ainda que acompanhado de declarações do proprietário, assumindo inteira responsabilidade, e de confrontantes, concordando com as divisas, não poderá ser aceito, se, com tal pedido, houver alteração da caracterização do imóvel, ou mesmo suprimento de elementos dessa caracterização, como metragens e área, omissos no respectivo registro ou matrícula anterior. Isso porque, em tais hipóteses, a averbação, que sem dúvida alguma implica, como já visto, retificação, em sentido lato, do registro ou da matrícula, só poderá ser feita mediante determinação judicial, em procedimento próprio, onde necessariamente será ouvido o representante do Ministério Público. Falece ao registrador de imóveis, pois, nesses casos, competência para proceder à averbação, e não lhe é possível valer-se das disposições do citado decreto 4.449/02, pelos motivos já acima mencionados. Cabe-lhe, em caso de insistência do interessado, submeter o pedido à apreciação do Juízo dos Registros Públicos, em regular procedimento de suscitação de dúvida, para que se decida como de direito.
Direitos
IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil
Article Number
6145
Idioma
pt_BR